sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Deveres e Direitos


Já nos debates sobre direitos humanos no Parlamento da Revolução Francesa de 1789 foi levantada esta exigência: Se proclamarmos uma declaração dos direitos do homem, tere­mos que acrescentar também uma declaração sobre os deve­res do homem. Se não, no final todos os homens teriam apenas direitos, que poderiam usar uns contra os outros, mas ninguém conheceria mais os deveres, sem os quais os direitos não podem funcionar.

Ao homem desde o início competem deveres. Os deveres foram formulados milhares de anos antes dos direitos. Mas 200 anos após a Revolução de 1789, nós vivemos hoje numa sociedade em que os indivíduos e grupos constantemente fazem valer seus direitos contra os outros, sem querer reconhe­cer para si próprios dever algum. Dificil­mente alguém pode construir uma casa ou uma estrada, uma autoridade pode anunciar uma determina­ção, sem que imediatamente sejam apresentados direitos contra isto. Nós vivemos numa socie­dade de exigências, ou mesmo numa "sociedade de disputa de direitos". Um terço de todos os advoga­dos do mundo exercem seu ofício nos EUA, onde as indeniza­ções consomem cerca de 3% de todo o produto social bru­to, Não seria o momento de nos concentramos de novo sobre os deveres?

O conceito de dever tem sido duramente maltratado. Ideologias totalitárias, autoritárias e hierárquicas de toda espécie inculcaram o "dever" (em rela­ção aos superiores, ao chefe, ao povo, ao partido, ao papa...); terríveis crimes foram praticados em nome do "dever" ou com base num "juramento" destinado a garantir a obediên­cia por autoridade divina. "Dever é dever" e "ordem é or­dem" – essas frases jamais podem voltar a vigo­rar. Obediência cega, seja no Estado ou na Igreja, é imoral. Porém mesmo todos os abusos não nos deveriam impedir de aceitar o conceito de dever, um conceito que desde Cícero ("De officiis") e desde o bispo Ambrósio de Milão ("De officiis ministrorum") possui uma longa história, e que passou a ser um conceito-chave da era moderna.

Não se pode esquecer que é precisamente o dever que constitui a diferença entre o homem, ser racional, e o animal, que só obedece a inclinações, instin­tos, impulsos ou imposição externa e domesticação. Mas na realidade o homem não é apenas um ser de razão, que obede­ça com plena evidência à sua razão e que por conseguinte não tenha necessidade de deveres. Um ser de razão e de instinto ao mesmo tempo, o homem tem a possibilidade - a chance e o risco - de poder decidir-se em liberdade e de agir de acordo com sua razão.

É importante ver-se, além disso, que o dever, embora mo­ralmente necessário, não força fisicamente. Se por um mo­mento abstrairmos das autoridades externas, o dever decorre da razão, que não é puramente técnica ou econômica mas sim ética, impelindo o homem ao agir moral. Mas na moderna discus­são em torno dos direitos humanos uma coisa está ficando esquecida: Todos os direitos implicam deveres, porém: nem todos os deveres decorrem de direitos Procuro explicar isto com a ajuda de três exemplos, um mais específico, outro mais geral, e o terceiro de grande generalidade:

1) Um exemplo específico: A liberdade de imprensa de um jornal ou de um jornalista é garantida e protegida pelo mo­derno Estado de direito; o jornalista e o jornal têm o direito de transmitir livremente as informações. Este direito o Es­tado não só não pode contrariar, como deve protegê-lo ativamente, e em caso de necessidade impô-lo mesmo através da força. Por isso o Estado e o cidadão têm o dever de respeitar o direito deste jornal ou deste jornalista à livre transmissão de informações.
Porém - com este direito ainda não ficou de forma algu­ma estabelecido o dever do próprio jornalista ou jornal, ou seja, o dever de informar de maneira objetiva e decente, de não deformar a realidade nem manipular a opinião pública, mas informar de acordo com a verdade.

2) Um exemplo mais geral: Também o direito de todo homem à propriedade é garantido pelo moderno Estado de direito. Este direito implica para os outros (para o Estado ou para os cidadãos individuais) o dever jurídico de respeitar esta propriedade e de não se apropriar dela.
Mas - quando falamos deste direito, não foi ainda de ma­neira nenhuma mencionado o dever do proprietário de usar a propriedade de maneira social e não associal, de refrear o insaciável desejo do homem por dinheiro, prestígio e consu­mo, e de desenvolver um sentido de medida e de modéstia.

3) Um exemplo de grande generalidade: A liberdade de consciência de todo homem para poder decidir segundo sua própria consciência implica para os outros (para os indivíduos como para o Estado) o dever jurídico de respeitar sua livre decisão de consciência; proteger a consciência individual é constitucional.
Mas com este direito não está de maneira nenhuma estabelecido o dever ético de consciência do próprio indivíduo de em cada caso seguir sua própria consciência, mesmo – e precisamente - quando isto lhe é desagradável e contrário.
De tudo isto se segue: Os direitos implicam certos deve­res. Mas nem todos os deveres são decorrentes de direitos.

Texto de Hans Küng, Uma Ética Global para a Política e Economia Mundiais, p.179 ss. -
Tradução de Carlos Almeida

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