sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Comemorar, Recordar

RUBEM ALVES

Saudade é a inclinação da alma na direção das coisas amadas que se perderam e continuam presentes como dor.
É PRECISO PREPARAR A ALMA com antecedência para o evento. O tempo da "comemoração" se aproxima. Comemorar quer dizer "trazer de novo à memória". Para quê? Para que se cumpra o ditado popular que diz "recordar é viver". Dentre todos os seres vivos os seres humanos são os únicos que se alimentam do passado. Eles comem aquilo que já deixou de existir.
Proust deu o nome de "Em Busca do Tempo Perdido" à sua obra clássica. Se está perdido irremediavelmente no passado, por que se entregar à tarefa inútil de procurá-lo? Por fora, no mundo cotidiano do trabalho, estamos em busca de coisas novas.
Mas a alma, nas penumbras em que mora, vive à procura de coisas velhas.
Alma é saudade. Saudade é a inclinação da alma na direção das coisas amadas que se perderam. Foram perdidas e, a despeito disso, continuam presentes como dor: "...Que a saudade dói latejada, é assim como uma fisgada no membro que já perdi...
" Saudade é a presença de uma ausência.
Para a saudade não existe cura.
Tudo o que podemos dar a ela como consolo é inútil. Por isso, Fernando Pessoa escreveu: "Mas por mais rosas e lírios que me dês, eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa, sobrar-me-á sempre de que desejar..
." A alma é como um queijo suíço, toda cheia de buracos que doem no seu vazio...Há um esquecer que é uma felicidade.
É como mar que limpa e alisa a areia que os humanos haviam pisado na véspera sem pedir desculpas.
Já tive essa estranha sensação bem cedo na praia diante da areia lisa, um sentimento de culpa por machucá-la com meus pés...
O esquecimento alisa a areia. Tudo fica puro, como se fosse a primeira vez.
Isso, do lado de fora. Mas lá no fundo, onde mora a saudade, não há esquecimento. Porque lá só moram as coisas que foram amadas. E o amor não suporta o esquecimento. "Aquilo que a memória ama fica eterno", escreveu a Adélia.
Há a história daquele homem dilacerado pela dor da saudade de sua amada que morrera. Em desespero, dirigiu-se aos deuses pedindo que a devolvessem. "A morte é mais forte que nós", responderam os deuses. "Não podemos devolver o que a morte levou. Mas podemos pôr um fim ao seu sofrimento. Podemos fazê-lo esquecer a sua amada. Podemos curá-lo da saudade..." Horrorizado o homem respondeu: "Não, mil vezes não! Pois é o meu sofrimento que a mantém viva junto de mim! "Palavra boa para dizer isso, parente de "comemorar", é "re-cordar". Pus o hífen de propósito para destacar o "cordar", que vem do latim "cor", que quer dizer "coração". Há memórias que moram na cabeça, muito úteis. Se nos esquecemos delas, cuidado! Pode ser Alzheimer se anunciando! Essas memórias não doem, são informações que levamos no bolso, ferramentas. Mas há outras memórias que moram no coração, são parte da gente.
O Chico sabia e escreveu: "Oh pedaço arrancado de mim..."Já estou preparando a minha alma para o evento. O Natal vai fisgar o membro que já perdi. Perdi a minha infância.
Gostaria mesmo era de ir para um mosteiro, longe de comilanças, presentes e risos. Num mosteiro eu poderia experimentar a bem-aventurança na alma que Fernando Pessoa descreveu como a alegria de não precisar de estar alegre... Eu gosto da minha tristeza natalina. Ela é verdadeira. Sou como aquele apaixonado que não queria ser curado da saudade...

Enviado por Beni Alcântara, Fortaleza/Ce

Rubem Alves (Boa Esperança, Minas Gerais, 15 de setembro de 1933) é um psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro, é autor de livros e artigos abordando temas religiosos, educacionais e existenciais, além de uma série de livros infantis.

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