quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Eclipse de Deus

Prezados amigos:

Interrompo hoje, momentaneamente, a série de mensagens das últimas semanas, por causa do lançamento de um novo livro. Num momento como esse, o autor do livro se sente como se lhe tivesse nascido mais um filho. Para o tradutor a experiência não chega a tanto, mas talvez se possa dizer que seria como se ele ganhasse um afilhado. Pois meu último “afilhado” acaba de vir ao mundo: A Verus Editora (Campinas, SP) acaba de lançar:

Martin Buber, Eclipse de Deus
Considerações sobre a relação entre religião e filosofia
Tradução de Carlos Almeida Pereira
(153 pág., R$ 34,90)

“Eclipse de Deus” se ocupa sobretudo com os aspectos filosóficos, éticos e religiosos da relação com o Absoluto. “Vivemos atualmente”, diz Buber, “o tempo do eclipse de Deus”. Durante um eclipse do sol, o sol parece haver deixado de existir, parece ter-se apagado; mas ele apenas está encoberto. Também o eclipsar-se da luz de Deus não é um apagar-se, um extinguir-se. Amanhã, o que se interpôs entre ele e a cultura atual já poderá ter desaparecido.

O autor, Martin Buber (1878-1965), é proveniente de uma família judaica de Viena, Áustria. Ensinou filosofia e religião na Universidade de Frankfurt, Alemanha. Um de seus trabalhos mais importantes foi traduzir o Antigo Testamento para o alemão. Em 1938 Buber fugiu da Alemanha de Hitler e emigrou para Israel. Um de seus grandes empenhos foi promover o entendimento entre israelenses e árabes, como também entre judeus e cristãos.
Trecho (pág. 47-48):

O amor a Deus e a idéia de Deus

Naquelas poucas linhas rapidamente esboçadas e que nos atin­gem como gritos da alma, escritas por Pascal em 1654, após duas horas de êxtase, e que até a morte ele levou costuradas no forro de seu colete, diz-se, logo após o título, "Fogo": "Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e dos sábios".

Esta foi a mudança de opinião que se realizou nele: não a conversão de alguém para quem Deus não existe em alguém para quem Deus existe, mas sim a conversão do Deus dos filósofos para o Deus de Abraão. Invadido pela fé, ele não sabe mais o que fazer com o Deus dos filósofos, isto é, com um Deus que ocupa um lugar determina­do em um sistema de pensamento. O Deus de Abraão, o Deus em quem Abraão crê, o Deus que Abraão ama - "toda a religião dos judeus", diz Pascal," consistiu unicamente no amor de Deus" - justamente por ser Deus não pode caber dentro de um pen­samento; ele simplesmente transcende, por completo, qualquer pensamento.

O que os filósofos chamam de Deus é necessaria­mente uma idéia; mas Deus, o "Deus de Abraão", não é idéia nenhuma - nele todas as idéias se anulam. Mesmo quando penso em um ser no qual as idéias se anulam filosoficamente, isto é, se anulam como idéias, não estou mais pensando no Deus de Abraão, não estou mais me referindo ao Deus de Abraão.

A "con­cupiscência específica" dos filósofos, como sugere Pascal, é o or­gulho: em lugar de Deus, eles oferecem aos companheiros seu sistema. "Como? Conhecestes a Deus e não quisestes que os ho­mens o amassem pessoalmente, mas que ficassem limitados em vós!" Justamente por colocarem no lugar dele a imagem das ima­gens, a idéia, ele se afasta, e nos distanciamos dele mais ainda. Não existe outra possibilidade, temos de escolher.

Pascal fez a esco­lha naquelas horas que fizeram tudo desmoronar, quando se cum­priu nele o que ele parece haver suplicado um pouco antes em sua oração de enfermo: encontrar-se, como no momento da mor­te, "separado do mundo, desnudado de todas as coisas, sozinho em sua presença, para responder à sua justiça com todos os mo­vimentos de seu coração".

Pascal, na verdade, não era um filósofo, era um matemático, e para um matemático é muito mais fácil do que para um filó­sofo distanciar-se do Deus dos filósofos. Mas se o filósofo, para realizar verdadeiramente essa mudança, tivesse, de alguma forma conceitual, que renunciar a incluir Deus em seu sistema, em lugar de conter Deus em seu sistema como um objeto entre outros, mesmo que o mais elevado, então sua filosofia como um todo e em todas as suas partes haveria de apontar para ele, sem no en­tanto tratar dele próprio. Porém isso significa que o filósofo te­ria de reconhecer e confessar que sua idéia do Absoluto é anu­lada no exato ponto em que o Absoluto vive; que ela é anulada lá onde se ama o Absoluto, porque aí o Absoluto já não é "o Ab­soluto", sobre o qual se pode filosofar, mas é Deus.

Carlos Almeida, Campina Grande/Pb

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