quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Por Que Ainda Ser Cristão Hoje


Prezados amigos,

Ao longo dos três últimos meses, tive oportunidades de enviar-lhes textos de autores que traduzi do alemão e que tiveram importância para a formação de meus pontos de vista e de minha mentalidade mais recente. Passando por alto os dois livros recém-editados no Brasil e os temas voltados para a memória de nosso pai São Francisco, foram eles: a austríaca Elisabeth Lukas, com suas profundas lições sobre a natureza do homem, particularmente sobre seu lado espiritual; e o monge alemão Anselm Grün, com suas não menos profundas lições de espiritualidade monástica e moderna. Passo hoje a apresentar excertos de um terceiro autor, discutido e polêmico, visto por uns como sumidade, e execrado por outros. Parece-me que, para uma opinião fundamentada, nada melhor do que conhecer alguns textos em primeira mão. O que Você poderá fazer a partir de hoje.
Carlos Almeida, Campina Grande/Pb


Veja no anexo a mensagem número 20.



Hans Küng é considerado um teólogo polêmico. Porém, mesmo combatendo o que considera errado na Igreja, ele está empenhado em ser cristão-católico e em assim permanecer. Tanto que comemorou em 2004 suas Bodas de Ouro de sacerdócio. Seu livro Por Que Ainda Ser Cristão Hoje (Verus Editora, Campinas-SP, 2004 – 105 pág., R$ 19,90) é como que uma profissão de fé do autor. Ao ler o trecho a seguir você poderá posicionar-se com referência aos itens abordados por ele.


Todos, cristãos e não-cristãos, poderão estar de acordo que sem consciência moral não poderá existir uma ordem de direito, e que a própria existência do Estado e de uma sociedade civilizada estaria comprometida. Pois não existe obrigação moral sem religião. E na prática, também, as normas e valores da cultura mundial – tais como dignidade humana, justiça, solidariedade, paz – sempre foram determinadas por critérios cristãos. Não seria, pois, con­veniente que se desse mais atenção aos valores que podem ajudar-nos a encontrar o caminho certo? Não no sentido de se voltar ao passado, mas sim de projetar nosso futuro com auxílio de uma bússola que, apesar de antiga, talvez não tenha perdido a utilidade – uma bússola que talvez possa voltar a indicar-nos a rota para um futuro de maior dignidade humana, reorientar-nos para os valores cris­tãos essenciais.


Não irão faltar os protestos dos não-cristãos: "Terá a mentalidade cristã ainda alguma coisa a dizer-nos? O cristianismo já era!" Mesmo assim, eu gostaria de expor aqui minhas razões, inclusive aos não-cristãos, bem como aos descrentes de fora e de dentro. De dar a essas pessoas uma res­posta franca e honesta.


Sinceramente, não tenho como contradizer os que rejeitam todo dogmatismo autoritário, toda moral estreita e casuísta distanciada da vida. Se tantos rejeitam o legalismo e oportunismo, a arrogância e intolerância de tantos teólogos e funcionários da Igreja, se tantos se revoltam contra uma piedade beata, ou contra a falta de criatividade das pessoas da Igreja, eles me têm do seu lado. E reconheço também o fracasso histórico do cristianismo: as persegui­ções contra os judeus, as cruzadas, os processos de heresia, a queima das bruxas, as guerras de religião, e também o caso Galileu e as falsas condenações de cientistas, filósofos, teólogos; e ainda o comprometimento da Igreja com determinados sistemas de governo e de pensamento, os erros nas questões da escravatura, da guerra, da mulher, da classe social e da raça; a cumplicidade das igrejas com os do­nos do poder no desprezo aos opri­midos e explorados... Em todas essas coisas a crítica tem cabimento.


Mas peço agora que o leitor reflita: Será que tudo isso é realmente "cristão"? Nem crentes nem descrentes poderão contes­tar: tudo isso é "cristão" somente num sentido tradicional, superficial, falso - no máximo como certos desmandos existentes no Brasil podem ser chamados de “brasileiros". É certo que a cristandade não pode descartar-se da responsabilidade por aquilo que é cha­mado “cristão”. Mas nada disso é cristão no sentido mais pro­fundo e original da palavra. Nada disso é verda­deiramente cristão: nada tem a ver com Cristo, em cujo nome se baseia. Tudo isso faz parte da­quilo que levou Jesus a ser crucificado. São, no fundo, coi­sas anticristãs, pseudocristãs.


Muitas coisas são chamadas “cristãs” – grupos, escolas, associações, partidos, igrejas... – mas o são apenas de nome! Mesmo quem se professe membro de uma igreja cristã – e eu assim me professo com plena convicção – não poderia afirmar que tudo quanto os detentores institucionais do cristianismo defendem seja cris­tão, e menos ainda especificamente cristão. Mesmo com a melhor boa vontade, não consigo chamar tudo isso de cristão, quando na minha própria Igreja, em questões de enorme importância para milhões de católicos, em vez de apelar-se ao Cristo Jesus, apela-se uni­camente para a própria autoridade eclesiástica. Nem com a melhor boa vontade eu consigo imaginar que Jesus de Nazaré tomasse hoje atitudes semelhantes às tomadas pelas autoridades romanas. Não posso acreditar:


• que ele, que advertiu os fariseus por causa da carga insu­portável que jogavam sobre as pessoas, declarasse hoje pecado mortal a utilização de todos os meios anticoncepcionais "artificiais";
• que ele, que convidava à sua mesa justamente os que ha­viam falhado, proibisse para sempre o acesso à sua mesa a todos os divorciados que voltam a casar-se;
• que ele, que constantemente se fazia acompanhar de mu­lheres (que cuidavam de sua manutenção) e cujos apósto­los (exceto Paulo) eram todos casados, proibisse hoje aos homens ordenados o casamento, e a todas as mulheres a ordenação;
• que ele, que disse: "Tenho compaixão deste povo", cada vez mais privasse as comunidades dos seus pastores e permitis­se que se desmoronasse um sistema de trabalho pastoral de todo um milênio;
• que ele, que tomava sob sua proteção adúlteras e pecado­res, baixasse veredictos tão duros em questões tão delica­das e que certamente requerem um julgamento diferencia­do e criterioso, como sexo antes do casamento, homosse­xualidade e aborto.
• que, em vez de se procurar convencer os teólogos por meio de argu­mentos, procurasse silenciá-los por meio de decretos e "declarações" ...
Menciono sem meias palavras todos esses aspectos, não porque isso me dê prazer, mas sim porque é dever e respon­sabilidade do teólogo dizer a verdade. .
Mas, embora conheça o fundo sombrio de muito daquilo que é chamado “cristão”, e embora conheça também as mais importantes objeções ao cristianismo, eu gos­taria de afirmar: confio que em nossa época, apesar de tudo, é possível encontrar no cristianismo uma orientação básica: não no que é "chamado" cristão, mas sim na mensagem cristã em si mesma, na fé cristã que não seja apenas objeto de crença, mas que também seja vi­vida na prática: no ser cristão!



Texto de Hans Küng, Por Que Ainda Ser Cristão Hoje, p. 17ss.


Tradução e adaptação de Carlos Almeida

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