segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O sentido na velhice


Prezados,


Ontem completou três meses do falecimento de Carlos Almeida. Publicamos a seguir uma mensagem inédita encontrada em seus arquivos e escrita três semanas antes da sua morte.


Com carinho,


Isabel Luisa.




O sentido na velhice

A vida é como um rio que corre entre o possível e o real. As possibilidades que a vida oferece a alguém como que borbulham da fonte, e a realidade é o mar no qual este rio desemboca. Para o mar da realidade, o homem leva as possibilidades transformadas em realidade. Aquilo que ele realizou na vida. E o que aí se realiza, ou também o que deixa de realizar-se, constitui aquilo para que se viveu. Mas nem toda possibilidade de sentido que a vida oferece chega a realizar-se. Algumas passam sem ser aproveitadas, elas “naufragam no meio do caminho” e nunca chegam ao mar da realidade – mas aquilo que chega é imperecível, pois da realidade nada pode ser retirado.

Para chegarem ao passado de alguém como conteúdos de sentido realizados, todos os conteúdos de sentido que esperam pelo homem no futuro têm que passar pelo buraco de agulha do “sentido do momento”. Quem, por exemplo, quer educar um filho, terá que enfrentar dia por dia as exigências da paternidade, até que por fim o filho saia para enfrentar a vida de forma independente, e o processo de sua educação se cristalize como um valor realizado na vida dos pais.

Na morte, os possíveis conteúdos de sentido do futuro são cortados de um só golpe, mas os conteúdos realizados no passado permanecem, porque o fato de terem sido realizados os põe a salvo da perecibilidade.

Se compararmos a juventude com a velhice, constataremos com surpresa que a velhice leva uma nítida vantagem. Pois o tesouro que a juventude possui, as muitas possibilidades que ela tem pela frente, é incerto; mas o tesouro da velhice em conteúdos já realizados é imperecível, é certo.
Da plataforma do presente o homem contempla em três direções, das quais nós obtemos três perspectivas para o homem idoso: “o olhar para trás”, “a tarefa presente” e “o olhar para a frente” – este último tanto em relação ao futuro quanto em relação também à intemporalidade após o futuro.

Iniciemos com o olhar para trás. É o ato de fazer o balanço. Um balanço existencial tem que ser feito, pois existe muito em DEVE e HAVER, em ser e devir, pois todo existencial ultrapassa o ter para atingir o ser. Que é que encontramos neste balanço da vida? O vivido e o não-vivido, o criado, experimentado, sofrido, e o perdido, o não-criado, não-experimentado e não-sofrido.
Fiquemos inicialmente nos êxitos. São as ações bem sucedidas, as experiências felizes, o que foi suportado com coragem, o que nunca teria acontecido se nós não tivéssemos existido. É a contribuição própria prestada para o êxito do mundo, da criação.

São coisas de que podemos orgulhar-nos, o coração ardente e a transbordar. É a colheita conseguida, que sempre de novo podemos contemplar com os olhos do espírito. Alguém há de contemplar os filhos e netos que criou e que se tornaram pessoas honestas e de valor. O que é muito, muito mesmo. Amor recebido e amor presenteado, estes dons celestiais, às vezes encontrados na terra banhando em ouro a vida do homem!

Outro contemplará uma imensa prática profissional, e admirar-se-á de quanto realizou, de quanta coisa passou por suas mãos, qualquer que tenha sido seu campo de atividade. Outros ainda olharão para os amigos e conhecidos, para as excursões e as viagens, para os esportes e passatempos, os teatros e bailes, as luzes de alegre exaltação, mas também para as catástrofes que mais uma vez tiveram um êxito feliz, para os momentos de perigo em que um anjo da guarda esteve ao seu lado. Existe uma frase tirada do baú de sabedoria da vovó e que os jovens nunca querem entender plenamente quando tentamos consolá-los com ela. Diz assim: “Quem sabe para que isso vai ser bom...” Pois bem, o olhar para trás do homem idoso para o que em sua vida foi bem sucedido é exatamente este saber para que isso foi bom.

Certo, há uma coisa pela qual mesmo o êxito é afetado: um dia ele chega ao fim. Isto nada lhe subtrai ao fato de ter sido um êxito, mas todo fim, todo limite também dói um pouquinho.
Os filhos que educamos saíram de casa, só vez por outra dão notícia, ocupados que estão com seus próprios afazeres. Assim deve ser – mas a gente fica só. Também o casamento, este casamento de tantos anos, talvez tenha terminado – por uma separação que foi inevitável, ou completado pela morte do parceiro, não menos inevitável. E a profissão em que nos engajamos, em que reunimos tantas experiências, foi substituída pela aposentadoria. Para não falar das relações, dos passatempos, das viagens; passaram, talvez para não serem reencontradas senão em fotos pouco lembradas nos álbuns da família. O homem idoso, ao contemplar com orgulho os êxitos de sua vida, confronta-se com “êxitos concluídos”, e a opção será sua, se simplesmente sofrerá com o limite e a limitação, ou se apreciará e valorizará o que surgiu dentro dos limites, e alegrar-se-á com isso. Ninguém expressou isto de forma mais bela que Immanuel Kant, quando escreveu:

Dias luminosos...
Não chores
por terem passado,
antes sorrias
por haverem existido!

Mesmo que um idoso seja tão fraco e débil a ponto de não poder fazer mais nada, talvez nem seja mais capaz de pensar muita coisa, ou esteja preso a uma cadeira de rodas ou a uma cama, uma coisa ele ainda pode: sorrir sobre os dias luminosos que nada e ninguém pode fazer com que deixem de ter acontecido.

O olhar para trás, evidentemente, também traz outras coisas à lembrança: os fracassos, e a vida que não foi vivida, os dias cinzentos do luto, os dias gelados do ódio, os dias parados da estagnação interior. O tempo de vida não aproveitado, ou erradamente aproveitado, pesa na alma da pessoa idosa, que não dispõe mais de muito tempo para preenchê-lo novamente. Gosto às vezes de apresentar a parábola de um grupo de crianças encarregadas de trabalhar com argila durante um tempo determinado, digamos das 4 às 6 da tarde. Cada criança fabrica alguma coisa com a argila que lhe foi entregue: um vaso, um animal, etc. Uma única criança fica a brincar com a argila, fazendo distraidamente uma coisa qualquer: muda, desmancha, faz uma bola de barro, joga bola com ela, e assim por diante.

Às 10 para as 6 quase todas as crianças já aprontaram sua figura e apenas estão enfeitando mais um pouco. O vaso recebe um ornamento de flores na beirada, o animal um rabinho engraçado. Para estas crianças não é ruim que o tempo de fazer coisas esteja terminando, elas fizeram o que estava em suas mãos. Mas aquela criança assusta-se de que já seja tão tarde. Fica nervosa, amassa a argila, sabendo que não vai mais conseguir muita coisa. Para esta criança, e só para ela, é lamentável que daqui a pouco o tempo esteja se esgotando. As outras aceitam bem que o tempo de brincar esteja se acabando; elas completaram a sua obra, usaram e gastaram a sua argila. Não haveria mais nada a acrescentar.

A parábola exagera no rigor, na medida em que na vida real sempre há esperança de mesmo a uma vida perdida se poder acrescentar alguma coisa que possua sentido. Ainda que seja apenas o reconhecimento de que muita coisa foi perdida, este simples conhecimento já é um crescimento interior, que é benéfico e que suprime coisas erradas.

Em minha longa prática com as pessoas, sempre de novo percebo que não é o que alguém sofreu na vida, mas antes as possibilidades de sentido desperdiçadas, ou o sofrimento provocado, que mais profundamente ficam marcados no íntimo – não os ferimentos sofridos que amargam o entardecer da vida, mas as decisões erradas que tomamos.

Uma coisa não devemos esquecer: não é o aplauso do mundo o que importa! Tudo termina por cair no esquecimento. Toda recordação termina por perder-se, se não nesta geração, certamente na geração seguinte. E no entanto tudo que foi feito fica guardado: Toda ação é o seu próprio monumento, diz Viktor Frankl. O homem constrói seus próprios monumentos através do seu agir, ele não depende de o mundo colocá-lo sobre um pedestal. O que foi bom permanece bom – mesmo que ninguém mais saiba disto, e que tenham passado milhões de anos, aquilo que foi bom ainda permanece bom, jamais perde o seu ser-bom. Por isso convém distanciar-nos da ingratidão do mundo, que experimentamos em medida crescente na velhice, e que sejamos gratos à satisfação com o que está guardado para jamais ser perdido.

Gostaria de recomendar às pessoas idosas serem conciliadoras no seu olhar para o passado. Quem perdoa aos que o ofenderam e o fizeram sofrer, quem for “indulgente”, experimentará também indulgência, e assim lhe será mais fácil ter esperança de que também lhe será perdoado o que fez de errado Pois nada pesa tanto e por tanto tempo na alma quanto as possibilidades de sentido não aproveitadas. Perdoar é uma das grandes oportunidades de sentido na velhice, e equivale a expiar as próprias culpas.

Com isto já nos encontramos na tarefa presente. O homem cresce por suas tarefas. Mas também diminui com a perda das tarefas, e por isso em cada fase da vida ele precisa impor-se tarefas adequadas à sua própria situação. De propósito se diz: ele deve impor-se, e não: elas devem lhe ser dadas.

Dá para entender os argumentos tantas vezes usados, nesses termos: A sociedade tem que utilizar o potencial ainda existente nas pessoas idosas, mas que permanece sem ser utilizado, como colaboração de honra e portanto gratuita – desta forma os idosos não sentirão tédio, e os outros, envolvidos no processo do trabalho, poderão ser aliviados. Isto possui seu lado correto, mas não podemos esquecer uma coisa: O idoso já realizou sua parte para a sociedade. Ele não pode ser convocado como um serviçal barato para outros serviços, apenas podemos pedir-lhe sua ajuda onde ela se fizer necessária. O que ele faz, fá-lo espontaneamente.
Na infância, o sentido do momento presente é esclarecido pelos pais e mestres. Na idade adulta ninguém mais nos chama a atenção para o sentido do momento presente, mas a gente vive sob um espartilho rígido de normas e pressões – o espaço de liberdade é estreito, embora nunca desapareça inteiramente. Na velhice o esquema rígido desafoga-se. Esta é uma chance para que desabroche a sabedoria da velhice, que não deve ser desperdiçada pelas restrições da sociedade. Ou seja, é a chance de que agora se pode e se deve escutar com calma aquilo para que se é chamado.

De forma alguma é verdade que quem envelhece esteja sujeito à desintegração e decadência em todas as suas dimensões. Diminuem as funções corporais, torna-se mais rígido o psiquismo, a capacidade de adaptar-se a novas situações e o desempenho da memória. Mas as capacidades espirituais e criativas do homem podem crescer até à mais avançada idade. Muitas e importantes obras foram criadas por pessoas de idade avançada: Alexander von Humboldt começou aos 76 anos a redigir o seu “Cosmos”, uma obra em cinco volumes que apresenta uma síntese do universo físico. Leopold von Ranke, o grande historiador alemão, começou com 80 anos a escrever sua História Universal e a concluiu com 91. Goethe concluiu aos 82 o seu “Fausto”. Michelangelo supervisionou a construção da catedral de São Pedro muito depois de haver completado 80 anos de idade. A “Deposição da Cruz” de Ticiano foi feita quando ele tinha 99 anos de idade. Giuseppe Verdi ainda compôs óperas e sin­fonias com a idade de 90 anos! Ainda em nossos dias existem realizações de ponta de pessoas muito idosas nos mais diversos terrenos: Pablo Picasso, Karajan, Oscar Niemeyer, Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Winston Churchill.

Todo homem é chamado para alguma coisa, cada um tem ainda alguma coisa como tarefa, mas esta não lhe pode ser imposta. Ele mesmo tem que encontrá-la com a sabedoria do seu coração, como seu o último sim incondicional à vida. E tem ainda a questão dos parentes. Da obrigação de preocupar-se de alguma forma com os pais e avós idosos nem as gerações modernas escapam, e para os idosos isto pode significar uma coisa bastante amarga. Eles tornam-se cada vez mais um peso, cada vez mais à mercê daqueles contra quem sustentaram mais de uma guerrinha, e de quem possivelmente se tornaram estranhos. Uma situação que produz sofrimento de ambos os lados.

A maternidade ou paternidade começa a partir de um ato de amor: a centelha do amor salta para os filhos, sustenta sua educação e por fim libera-os para viverem sua própria vida. Porém, mais uma vez ela é exigida dos velhos pais, no tempo breve ou longo que dura sua despedida dos filhos. Conseguem os pais ficar humildemente em segundo pla­no, ou são imperiosos no exigir a atenção dos filhos? Ao ocupar-nos com as tarefas atuais do homem idoso, não podemos esquecer o imenso sentido que existe na tarefa de tornar as conseqüências da própria velhice tão leves quanto possível às pessoas encarregadas de cuidar deles, e isto por nenhum outro motivo que não o amor ao próximo. Um amor que, como sempre, reflete seus raios de volta sobre aquele que ama e contribui para o bom êxito da despedida.

Com isto chegamos à última perspectiva, o olhar para a frente. Também o homem idoso ainda tem um futuro diante de si, mesmo que este futuro esteja resumido a poucos dias, semanas ou anos. E mais uma coisa tem ele diante de si: a saída do tempo e a entrada da intemporalidade, seja como for que a imagine.

Muitas pessoas idosas não começam nada de novo porque pensam que não vale mesmo a pena. Atrás disso está o medo de deixar uma obra incompleta quando de repente se vier a ser chamado. Mas a este perigo nós temos que nos expor, e não só na velhice, mas ao longo de toda a vida. Nunca sabemos até que ponto havemos de chegar quando iniciamos uma coisa nova. Nunca sabemos se uma coisa em que investimos nossas energias valerá a pena. Tudo, toda a vida do homem, permanece uma obra fracionária, e no entanto ela permanece, e pode ser tão completa quanto a "Sinfonia Inacaba­da" de Schubert, que é uma de suas mais belas sinfonias. Por isso a velhice não deve impedir ninguém de olhar para o futuro ou de planejar. Mesmo que o futuro não venha mais a realizar-se, o fato de olhar para ele e de planejá-lo foi uma experiência bonita, uma vivência que valeu a pena ser vivida.

O olhar o futuro, sem dúvida, traz consigo também o olhar para a morte, que está à espreita no final. A consciência da morte é um distintivo do espírito humano, ou seja, uma prova de que o homem, na sua dimensão espiritual, pode erguer-se do aqui e do agora, que em pensamento ele pode transferir-se para um outro espaço e um outro tempo, o que o animal não consegue. O animal vive sempre unicamente no aqui e agora, não pode elevar-se acima disso, e por isso também ele nada sabe da morte a não ser no momento de morrer, ele vive em paradisíaca inconsciência.

Mas o homem é espiritualmente independente do espaço e do tempo, e isto já durante a vida. Ele pode, por exemplo, pensar num amigo que se encontra na Inglaterra, e então interiormente ele está com este amigo, mesmo que no espaço e no corpo ele esteja no Brasil. Ou pode em pensamentos transportar-se de volta para a sua infância ou para a Antigüidade, para o tempo dos gregos e romanos, embora vivendo no século 21. Em amorosa recordação pode o homem demorar-se com uma pessoa já falecida, e então ele está com ela, fora da estrutura terrena do espaço-tempo. Desta forma, o espírito, e também a personalidade espiritual do homem, já está sempre fora do espaço e do tempo, está no corpo em lugar nenhum, e também não no túmulo. E o saber da morte nada mais é que o saber da separação definitiva do espírito humano de seu envoltório psicofísico, e do retorno do espírito à sua pátria situada para além do espaço e do tempo.

Mas neste caminhar para a pátria verdadeira do ser humano a vanguarda é constituída pelos idosos - vamos, portanto, ao seu encontro com atenção e respeito! Assim nós, os mais jovens, teremos menos medo da vida, e os mais velhos menos medo da morte.

Carlos Almeida Pereira

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