terça-feira, 25 de novembro de 2008

Homenagem a Carlos Almeida Pereira



Num emocionante e dramático relato, a editora descreve em seu posfácio como se deu a procura por um tradutor competente, o trabalho de tradução em si, a doença de Carlos Almeida e enfim, a decisão de Isabel Luisa em continuar a obra.

Uma belíssima homenagem ao grande homem que foi e continua sendo Carlos Almeida.

O livro está disponível no site da Livraria Cultura e nas livrarias dos estados do Sul e Sudeste.



Confira a seguir o posfácio escrito pelos editores brasileiros.




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É natural que a palavra “livro” traga à mente do leitor a imagem do autor sentado à escrivaninha, pululante de idéias, ou, ainda, as características físicas desse objeto tão peculiar, sem que lhe ocorra pensar no meio do caminho entre o autor e os serviços gráficos que lhes conferem tais características. No entanto, para nós, situados precisamente neste trecho, livros, propriamente ditos, não são o resultado exclusivo do trabalho dos seus autores, cujo valor intrínseco independe de sua publicação, nem apenas o fruto do seu processamento industrial. Para nós, livros são feitos da soma de dedicações individuais para que a obra de um ou vários autores encontre seus leitores e o seu valor intrínseco se reflita na sociedade. São, portanto, um produto sobretudo artesanal, que, só após passar por muitas mãos, olhos e afetos, transforma-se em objeto industrial. Até chegar a esse ponto, um livro entra na vida dos profissionais envolvidos – editores, coordenadores, tradutores, revisores, designers e produtores, entre outros –, centraliza suas rotinas por dias, semanas ou meses, cria vínculos entre todos e constitui-se num capítulo da história pessoal de cada um.

Desde o início, a decisão de editar, dentro de um prazo apertado, um livro de original alemão, idioma obscuro para nossa equipe permanente, soou como um risco, que só decidimos correr pela originalidade, a qualidade e a oportunidade que percebemos nesta obra. A publicação, entretanto, condicionava-se a encontrarmos um tradutor plenamente confiável, competente, rápido, que compreendesse o universo particular dessa narrativa, e, além do mais, fosse “bom de jogo”, ou seja, capaz de ouvir e avaliar palpites de nossa equipe, que, mesmo sem poder acercar-se do texto alemão, sempre poderia indicar passagens em que a tradução não soasse bem. Chegamos, assim, ao professor Carlos Almeida Pereira, cearense radicado em Campina Grande, tradutor agilíssimo e altamente competente, professor, autor de três livros e, coincidência das coincidências, padre, que, assim como Veronika Peters, deixou a vida religiosa e, sem arrepender-se do passado nem descrer da fé, constituiu família.

Já em nosso primeiro contato, ficou claro que Frei Filipe, como continuava a ser chamado por muitos, não abandonara o voto de humildade. Depois de traduzir o primeiro capítulo, a título de “experiência”, o tradutor de mais de 90 obras, de autores como Albert Einstein e Hans Küng, sugeriu que a nossa equipe trabalhasse sobre a primeira versão da sua tradução, ainda antes que ele a revisasse, e, dessa forma, fôssemos logo apontando o que não nos parecesse bem. Assim foi feito, e, sem jamais termos nos encontrado pessoalmente, durante três meses estivemos estreitamente ligados pelo interesse de fazer com que a história de Veronika Peters chegasse a você nas melhores condições, estabelecendo uma ponte virtual entre o Rio e Campina Grande, com escala na Baviera.

Na última sexta-feira de julho, o quinto capítulo aterrissava no correio eletrônico, com ligeira e surpreendente vantagem sobre o cronograma.

Céu de brigadeiro, mar de almirante, e, então, o curto-circuito: na terça-feira, recebemos, atônicos, a mensagem de Filipe, filho do professor Carlos. Contava-nos que o pai sofrera um infarto e estava no CTI, e, mesmo diante desse quadro, Filipe tinha a delicadeza de preocupar-se com o andamento do nosso trabalho. Por duas semanas, ele e Isabel Luisa, sua irmã, continuaram a enviar-nos informes sobre a saúde do pai. Nós permanecíamos apreensivos e quase imóveis: de um lado, uma pessoa e, de fato, já uma família, que tínhamos aprendido a apreciar; de outro, o dever profissional, contas, números – frios, mas essenciais para uma jovem editora com o orçamento apertado –, uma sinuca que, depois de ter lido os debates entre Veronika, Irmã Beatriz e Madre Rafaela acerca da livraria do mosteiro, o leitor seguramente compreenderá.

Estávamos nisso, quando um e-mail de Isabel Luisa entreabriu e pareceu fechar rapidamente uma janela: ela, que vivera três anos na Alemanha, conhecia bem o idioma, lera o livro e ajudara o pai nas passagens em que se exigia a vivência do dia-a-dia no país, vacilava em oferecer-se para completar o trabalho, que seria o primeiro como tradutora. Essa seria, para nós, a solução ideal, desde que ela, de fato, tivesse o conhecimento necessário, o que era muito difícil avaliar. Foi o que lhe dissemos, da forma mais sincera possível.

Aguardávamos sua resposta, aflitos por todos os lados e já pensando num plano “B”, quando, em pleno Dia dos Pais, uma mensagem de Isabel Luisa nos chegou carregada de pesar. Seu pai falecera, ela nos escrevia enquanto o corpo era velado e, com a típica valentia nordestina, queria informar-nos que, sim, topava o desafio. Havia concluído que, com seus conhecimentos do alemão e o acervo do pai, poderia fazer algo de que ele se orgulharia. Mais tarde, ela contaria que ouvira da família e dos amigos que aquele trabalho era o que o pai lhe havia deixado. E, quando lhe perguntamos se não seria uma missão dolorosa demais para ela, respondeu-nos que, ao contrário, assim poderia sentir-se mais perto do seu pai.

Seria a última tradução de um homem que dedicara boa parte da vida aos livros, e a primeira de sua filha. Nós gostamos de gente e de histórias bonitas, e não deixaríamos essa passar. Se, objetivamente, traduzir é sempre uma tarefa espinhosa, naquele caso ninguém teria mais paciência nem melhores motivos para enfrentar os espinhos do que Isabel Luisa. Cremos que acertamos e, por todas as razões imagináveis, torcemos para que os leitores compartilhem a nossa avaliação.
E, enfim, já que dessa vez nos demos o direito de romper a discrição habitual e desejável nos editores, aproveitamos o ensejo para agradecer a amigos da casa, que, sem participação direta, acabaram exercendo algum papel fundamental nesta edição: Jürgen Heye, Ingrid Schwanborn, Francisco Brautigam, Kristina Michahelles e André Delmonte.

Que a indiscrição desta página seja a nossa homenagem à bela impossibilidade de distinguir em Carlos Almeida Pereira o profissional excepcional da pessoa admirável.

Editora Guarda-Chuva

Um comentário:

Sérgio Almeida Franco disse...

Fico feliz e orgulhoso de ver minha querida prima dar continuidade a um trabalho de tanta complexidade como as traduções de Tio Carlos.

Bebel, vc também merece os mesmos elogios que tio Carlos recebeu. Não é nada fácil concluir uma tradução tão complexas ainda mais nas condições em que essa missão lhe foi passada.

Um beijão,

Sérgio