domingo, 2 de maio de 2010

Trabalhar pelo bem sem olhar a quem

Desde a Antiguidade, os homens refletem sobre o que seria o bem e como podemos praticá-lo no dia a dia. Hoje, o Diário do Nordeste inicia série de reportagens discutindo como trabalhar pelo bem do próximo se torna mais necessário, sobretudo, como forma de garantia dos direitos fundamentais

Engana-se quem pensa que trabalhar é apenas gastar os neurônios e o suor para obter a remuneração no fim do mês. Por definição, nos dicionários, o verbete trabalho significa: "aplicação das forças e faculdades humanas para alcançar um determinado fim". Assim, diferente de emprego, esse objetivo pode estar relacionado a transformar o ambiente ao redor, contribuindo para o bem do próximo. Já pensou em fazer isso?

Por meio de pequenas ações diárias, como ensinam os especialistas na área, podemos praticar o tão almejado "bem", que pode contribuir para a boa e mais igualitária convivência. Tanto que, nas sociedades atuais, ações com esse fim vêm ganhando cada vez mais força. Sejam elas, diga-se de passagem, por meio de atitudes individuais; de empresas privadas, com a responsabilidade social; ou por mobilização das próprias comunidades. Porém, para isso, é preciso, primeiro, entender o que seria esse tão falado bem.

Antiguidade Clássica

No decorrer dos anos, para se ter uma ideia, a temática promoveu discussões no Ocidente, iniciadas ainda na Antiguidade Clássica, com os gregos. Os filósofos Aristóteles e Platão, por exemplo, possuíam uma visão diferente da perspectiva moderna, como lembra a professora de Filosofia e Ética da Universidade de Fortaleza (Unifor), Sandra Elena Souza.

De acordo com ela, Platão, ainda no século IV a.C., aponta o bem como algo transcendente, superior ao que existe de fato e que indica como deve ser a realidade. O bem não seria característica do homem, mas regeria o universo. Porém, só ele seria capaz de decifrar o "norte". Já a perspectiva aristotélica completava que o bem não deve ser algo almejado, e sim praticado. O filósofo alertou que a felicidade seria o resultado dessa prática, gerado naturalmente.

Na concepção platônico-aristotélica, diz Sandra, o bem ainda aparece como proporção geométrica, sendo o equilíbrio entre o excesso e a falta, além de só alcançado na dimensão política. Isto é, por meio do entrelaço de ações em comunidade, e não individuais.

Com o tempo, as transformações sociais, históricas e políticas no mundo trouxeram mudanças às teorias gregas. Até que se chegou, como comenta, à atualidade, na qual a discussão está no indivíduo.

Por isso mesmo, segundo alerta o cientista social Alessandro de Luca, o conceito de "bem" precisa ser relativizado. "Temos de lembrar que o conceito de bom, justo e lindo depende da educação e da cultura". Para ele, trata-se de um conjunto de informações que herdamos da sociedade e reproduzimos. "Se cada um parte do pressuposto de que a concepção é sua, é mais fácil entender e lutar pelo outro".

Diante dessa concepção, o padre Rino Bonvini, presidente do Movimento de Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim (MSMCBJ) explica que, além da ausência do mal, o bem é "tudo que se pode fazer e pensar para a construção de um mundo melhor". Seria, acrescenta a clínica geral e geriatra Lilia Bessa, uma forma de garantir aos que estão ao redor a melhoria na qualidade de vida nos âmbitos material, espiritual ou social.

Educação política
Entender direitos se faz necessário

Na vivência em sociedade, muitas são as formas de contribuir para o bem. Talvez a mais conhecida seja o apoio ao próximo em momentos difíceis. De acordo com o padre Rino Bonvini, presidente do Movimento Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim (MSMCBJ), um dos caminhos "é acolher o ser humano em sua dor, seu sofrimento psíquico, escutando com empatia e iniciando um caminho de transformação", indica.

Porém, além desse apoio, ações mais concretas podem ser praticadas com projetos sociais, oficinas e mobilização por melhores condições. Nesse sentido, alerta a professora de Filosofia e Ética da Universidade de Fortaleza (Unifor), Sandra Elena Souza, é necessária uma "educação política", que resulta em informações e conhecimento acerca dos direitos e do que acontece ao nosso redor. A Constituição de 1988, por exemplo, defende que educação, saúde, lazer e outros são direitos inerentes aos cidadãos. No entanto, diz, quando não existir "educação política", não haverá a prática do bem na sociedade.

Constituição

A educação política é o conhecimento dos desafios, obstáculos e desigualdades. Com a formação, pode-se agir com justiça. "A desinformação permite que desconheçamos o que há de bom". Para isso, finaliza o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-CE), Valdetário Monteiro, o detalhamento da Constituição Federal de 1988 teve o objetivo de criar a cultura de gozo pleno dos direitos e garantias.

A opinião do especialista
Conhecer a si mesmo

Gisneide ErvedosaDra. em Psicologia Clínica e profa. da unifor

A sabedoria popular diz: fazendo o bem sem olhar a quem. Assim sendo, o bem estaria além da dualidade da nossa mente que nos corrói, impulsionando-nos de forma compulsiva a buscar o que pensamos que é bom e a fugir do que condicionamos a julgar como mau ou desagradável. Devemos fazê-lo, diz a máxima, sem rotular a pessoa como "meu amigo", "meu parente", "meu inimigo", "meu gato", "meu cachorro", "meu passarinho" ou "minha barata".

Jesus disse que não há mérito em se amar o amigo, então, devemos amar o inimigo. Isto é, aquilo que pensamos ser mau, desagradável, incômodo, estranho, diferente... Porém, sabemos que se não estou bem comigo mesma, passo a não estar bem com os outros nem com a vida. Fazer o bem começa em cada um, amando a si mesmo. Como amar o próximo se não amo a mim?

Costuma-se dizer, ainda, que não se ama o que não se conhece. Então, preciso me conhecer melhor, meus fantasmas, os "inimigos" dentro de mim: o que não aceito, penso não estar bem em mim, partes do que não me permito perceber. Se me alieno e fujo do que não gosto, do que acho que não vai bem em mim a todo instante, terminarei "vendo chifre em cabeça de cavalo" - inimigos, o "demônio" projetado em toda parte.

Como sair dessa "alucinação coletiva"? Primeiro, aceitar essa neurose, reconhecer a ilusão da "separatividade", que nos coloca o tempo todo, praticamente, contra partes de nós mesmos, do diferente, do outro, do mundo... Se assim não fizermos, sentimo-nos fragilizados, como se não existíssemos: o meu é sempre melhor do que o teu, numa tentativa desesperada de autoafirmação do pequeno eu. Por outro lado, começamos a fazer o bem ao reconhecer e acolher os incômodos, dando a mão ao medo, ao problema, ao sintoma, àquela dificuldade...

Não excluir, rejeitar, julgar ou negar dentro ou fora de nós o diferente. Quando paramos de rotular e cobrar uma mudança sobre algo ou alguém, uma primeira mudança já ocorre e abre espaço para que outras venham a ocorrer.

Conscientemente, com a percepção mais limpa dos preconceitos e julgamentos, podemos simplesmente observar os fenômenos de forma mais lúcida. Então, ao contrário do que se possa pensar, vamos apoiar o ser, para que as dificuldades sejam pouco a pouco superadas e não negadas, por meio da fantasia da acomodação.

Ao contrário do que muita gente pensa, fazer o bem não é "passar a mão na cabeça" ou superproteger o outro ou a si próprio. É aprender a lidar com a confusão da mente estando mais despertos. Sem essa mente mais clara, qualquer boa intenção, seja a do mais lindo projeto ou sorriso, será vã.

Assim, mais do que escutar quem compartilha uma dificuldade ou êxitos, é necessário desenvolver o saudável dom da escuta interior. Dessa maneira, podemos escutar melhor o outro, percebermos a sua necessidade, que pode ser, talvez, a de tomar o medicamento mais amargo. Se for dado com sabedoria, amor e respeito, ele vai, com certeza, tomá-lo.

JANINE MAIA - REPÓRTER -DIÁRIO DO NORDESTE - FORTALEZA/CE

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