sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Entre o espirro e a lágrima


Não estranhe se um dia um médico disser que as recaídas depressivas estão associadas ao pó de casa ou ao pelo do cachorro. As alergias podem desgovernar as emoções e desatar problemas que vão além do nariz entupido


por Giuliano Agmont

Os lenços que enxugam o pranto em um momento de desânimo e secam o nariz na crise de coriza podem não ser o único elo entre a depressão e as alergias respiratórias, doenças tão frequentes quanto nocivas ao bemestar. Um trabalho recém-apresentado no encontro anual da Associação Americana de Psiquiatria sugere, pela primeira vez, que existem correlações entre os espirros crônicos e os descompassos de humor. No levantamento, as crises alérgicas se mostraram importantes gatilhos para os transtornos emocionais em pessoas que já estão com os nervos em apuros. É como se os mecanismos que levam à obstrução nasal diante de um alérgeno — o pó doméstico, por exemplo — também despertassem as preocupações, a melancolia e o desânimo.

Assinado por um grupo da Escola de Medicina da Universidade de Maryland, em Baltimore, nos Estados Unidos, o estudo reuniu 100 voluntários com depressão ou transtorno bipolar. Quase metade deles apresentava também sintomas alérgicos desencadeados pelo contato com o pólen produzido por um tipo de árvore comum nas cidades americanas. Os cientistas avaliaram os participantes durante a chamada estação polínica das plantas, que, naquele país, acontece entre o final do inverno e o início da primavera, nos últimos dias do mês de março. E também coletaram sangue desses voluntários para analisar os níveis de anticorpos específicos produzidos na presença do pólen.

“Entre os alérgicos, o sistema imunológico cria anticorpos para se defender de um agente inofensivo ao organismo da maioria das pessoas e, com isso, o corpo se torna vítima dessa própria reação”, explica o alergista Dirceu Solé, professor da Universidade Federal de São Paulo. A pesquisa americana revela que, além do nariz escorrido, pessoas alérgicas e deprimidas apresentaram pioras no estado de humor durante a alta temporada de polinização. Felizmente, também se observou que o tratamento dessa hipersensibilidade ao pólen pode impedir a ocorrência das crises depressivas.

No Brasil, o pólen não é um vilão tão temido quanto lá fora. Em compensação, um em cada quatro brasileiros sofre de rinite alérgica desencadeada por outros fatores, como o ácaro da poeira, a caspa de animais e o mofo. Segundo o professor Dirceu Solé, que também preside a Associação Brasileira de Alergia e Imunopatologia, os mecanismos que disparam as respostas a esses alérgenos são similares. Para o especialista, a associação entre as alergias respiratórias e os transtornos de humor é indireta. Ele explica que as crises agudas de tosse, espirro, coriza e congestionamento nasal costumam acontecer no período noturno, quando as pessoas têm contato com travesseiros, cobertas e colchões repletos de pó. Daí, dorme-se mal por causa de tanto incômodo e a privação do sono favorece a recaída depressiva, entre outros problemas. “Além disso, uma pessoa alérgica tem de aprender a conviver com quadros agudos e sem cura, que muitas vezes impõem restrições à sua qualidade de vida. Isso cria uma sensação de impotência, gera frustração e derruba a autoestima”, complementa Solé.

Efeito colateral?

O psiquiatra Ricardo Moreno, diretor geral do Grupo de Estudos de Doenças Afetivas e professor do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, concorda que a principal relação entre alergia e transtornos de humor não é causal. Ou seja, não seria a alergia em si a responsável pela piora do quadro depressivo — podem existir fatores independentes ou psicológicos no meio dessa história. O pesquisador revela, no entanto, que há evidências de que mecanismos biológicos disparados por alergias também contribuam para a pane emocional. “Há uma relação de causa e efeito entre processos inflamatórios provocados por doenças imunológicas, como é o caso das alergias, e a depressão e o transtorno bipolar. Mas ainda não sabemos como isso acontece”, conta Moreno. A descoberta dessa conexão entre problemas aparentemente distintos pode favorecer, segundo os cientistas de Baltimore, o desenvolvimento de novas terapias para conter tanto os ataques alérgicos quanto os picos depressivos.

Da mente para o corpo

Se há provas de que a alergia desencadeie a depressão, será que o desânimo frequente patrocinaria coceiras, espirros e afins? Para Ricardo Moreno, a resposta é positiva. “O comportamento emocional pode deflagrar ou agravar quadros alérgicos”, afirma. “O transtorno de humor é uma doença multissistêmica, que não só provoca sofrimento, abatimento, choro e irritação como também propicia diversas alterações fisiológicas em seu portador”, completa. Ora, as conturbações da mente desorientam o sistema imune, que pode se expressar além da conta diante de um elemento inofensivo que voa pelo ar. Com base nisso, dá para extrair uma mensagem muito útil das investigações sobre as complexas interferências entre as emoções e a saúde do corpo: cuidar do nariz e dos pulmões significa também cuidar da alma. E vice-versa.

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