quinta-feira, 3 de junho de 2010

A felicidade e a indústria da depressão

“O homem não aceita mais ficar triste” – Entrevista de Miguel Chalub para a “IstoÉ”



O médico aponta o uso desnecessário de remédios para curar simples tristezas. Aponta também lobby da indústria farmacêutica como má influência e médicos mal informados ou despreparados como cúmplices. No fundo parece que a busca humana pela felicidade (prazer negativo ou positivo) encontra uma nova “solução”. E quer solução mais moderna que uma pílula? Só se fosse por download mesmo.

Uma das maiores autoridades brasileiras em depressão, o médico diz que, hoje, qualquer tristeza é tratada como doença psiquiátrica. E que se prefere recorrer aos remédios a encarar o sofrimento.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que a depressão será a doença mais comum do mundo em 2030 – atualmente, 121 milhões de pessoas sofrem do problema. Para o psiquiatra mineiro Miguel Chalub, 70 anos, há um certo exagero nessas contas. Ele defende que tanto os pacientes quanto os médicos estão confundindo tristeza com depressão. “Não se pode mais ficar triste, entediado, porque isso é imediatamente transformado em depressão”, disse em entrevista à ISTOÉ.

Professor das universidades Federal (UFRJ) e Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), ele afirma que os psiquiatras são os que menos receitam antidepressivos, porque estão mais preparados para reconhecer as diferenças entre a “tristeza normal e a patológica”. Mas o despreparo dos demais especialistas não seria o único motivo do que o médico chama de “medicalização da tristeza”. Muitos profissionais se deixam levar pelo lobby da indústria farmacêutica. “Os laboratórios pagam passagens, almoços, dão brindes. Você, sem perceber, começa a fazer esse jogo.”
Leia alguns trechos da entrevista:

ISTOÉ – Por que tantas previsões alarmantes sobre o aumento da depressão no mundo?
Miguel Chalub – Porque estão sendo computadas situações humanas de luto, de tristeza, de aborrecimento, de tédio. Não se pode mais ficar entediado, aborrecido, chateado, porque isso é imediatamente transformado em depressão. É a medicalização de uma condição humana, a tristeza. É transformar um sentimento normal, que todos nós devemos ter, dependendo das situações, numa entidade patológica.

ISTOÉ – Por que isso aconteceu?
Miguel Chalub – A palavra depressão passou a ter dois sentidos. Tradicionalmente, designava um estado mental específico, quando a pessoa estava triste, mas com uma tristeza profunda, vivida no corpo. A própria postura mostrava isso. Ela não ficava ereta, como se tivesse um peso sobre as costas. E havia também os sintomas físicos. O aparelho digestivo não funcionava bem, a pele ficava mais espessa. Mas, nos últimos anos, a palavra depressão começou a ser usada para designar um estado humano normal, o da tristeza. Há situações em que, se não ficarmos tristes, é um problema – como quando se perde um ente querido. Mas o homem não aceita mais sentir coisas que são humanas, como a tristeza.

ISTOÉ – A que se deve essa mudança?
Miguel Chalub – Primeiro, a uma busca pela felicidade. Qualquer coisa que possa atrapalhá-la tem que ser chamada de doença, porque, aí, justifica: “Eu não sou feliz porque estou doente, não porque fiz opções erradas.” Dou uma desculpa a mim mesmo. Segundo, à tendência de achar que o remédio vai corrigir qualquer distorção humana. É a busca pela pílula da felicidade. Eu não preciso mais ser infeliz.

ISTOÉ – O que diferencia a tristeza normal da patológica?
Miguel Chalub – A intensidade. A tristeza patológica é muito mais intensa. A normal é um estado de espírito. Além disso, a patológica é longa.

ISTOÉ – Os médicos não deveriam entender este processo?
Miguel Chalub – Os médicos não estão isentos da ideologia vigente. O que acontece é: você vem ao meu consultório. Eu acho que você não está deprimido, que está só passando por uma situação difícil. Então, proponho que você faça um acompanhamento psicoterápico. Você não fica satisfeito e procura outro médico, que receita um antidepressivo. Ele é o moderno, eu sou o bobão. Para não ser o bobão, eu receito um antidepressivo logo. É uma coisa inconsciente.

ISTOÉ – Inconsciente?
Miguel Chalub – Os médicos querem corresponder à demanda. Senão, o paciente sairá achando que não foi bem atendido. Receitando um antidepressivo, eles correspondem à demanda, porque a pessoa quer ser enquadrada como deprimida. Mas há a questão dos laboratórios. Eles bombardeiam os médicos.

ISTOÉ – A ponto de influenciar o comportamento deles?
Miguel Chalub – Se for um médico com boa formação em psiquiatria, mesmo que não seja psiquiatra, ele saberá rejeitar isso, mas outros não conseguem. Eles se baseiam nos folhetos do laboratório. Não é por má-fé. Os laboratórios proporcionam muitas coisas. Pagam passagens, almoços, dão brindes. O médico, sem perceber, começa a fazer o jogo. Porque me pagaram uma passagem aérea ou me deram um laptop, acabo receitando o que eles estão querendo.

ISTOÉ – O que causa a depressão?
Miguel Chalub – Esse é um dos grandes mistérios da medicina. A gente não sabe por que as pessoas ficam deprimidas. O mecanismo é conhecido, está ligado a uma substância chamada serotonina, mas o que o desencadeia, não sabemos. Há teorias, ligadas à infância, a perdas muito precoces, verdadeiras ou até imaginárias – como a criança que fica aterrorizada achando que vai perder os pais. As raízes da depressão estão na infância. Os acontecimentos atuais não levam à depressão verdadeira, só muito raramente. Justamente o contrário do que se imagina. Mas mexer na infância é muito doloroso. Não tem remédio para isso. Precisa de terapia, de análise, mas as pessoas não querem fazer, não querem mexer nas feridas. Então é melhor colocar um esparadrapo, para não ficar doendo, e pronto. É a solução mais fácil.

ISTOÉ – O que é felicidade para o sr.?
Miguel Chalub – A OMS tem uma definição de saúde muito curiosa: a saúde é um completo estado de bem-estar físico, mental e social. Essa é a definição de felicidade, não de saúde. Felicidade, para mim, é estar bem consigo mesmo e com o outro. Estar bem consigo mesmo é também aceitar limitações, sofrimento, incompetências, fracassos. Ou seja, felicidade também é ficar triste de vez em quando.”

Enviado pela amiga Ana Lúcia, psicóloga e psicoterapeuta, Salvador/Ba

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