RUY CASTRO
Outro dia, os fãs do guitarrista Eric Clapton lamentaram quando ele confessou que estava ficando surdo por excesso de exposição à própria música -40 anos tocando diante de caixas de som impróprias para o ouvido humano. Houve também quem achasse bem-feito: por que um homem tão sensível, como ele parece ser, precisa tocar tão alto?
Soube-se depois que Clapton não é o único de sua geração a estar ouvindo sons imaginários -assobios, sinos, gongos, campainhas, serra elétrica. Outros roqueiros em idade provecta, como Pete Townshend e Ian Anderson, estariam sofrendo do mesmo mal. Sem falar na população inglesa quase em massa, que há 50 anos não escuta uma valsa ou uma berceuse, só música pesada.
Também há pouco, os otorrinos alertaram que os iPods e MP3 players estão ensurdecendo os usuários -porque estes não se limitam a usar "socialmente" a tecnologia, mas passam o dia plugados aos aparelhos e com os fones enfiados no canal auditivo. Ou seja, o planeta está produzindo uma multidão de neo-surdos, o que fará com que os não-surdos tenham de falar alto para se fazer ouvir e, com isso, logo estaremos aos brados uns com os outros até para sussurrar declarações de amor.
Certa vez, fui entrevistar o cartunista Nássara para um livro sobre Nelson Rodrigues. Ele me recebeu no seu apartamento em Laranjeiras, mas, aos 82 anos, já estava para lá de surdo. Passou-me um grande bloco de papel e uma caneta pilot e me pediu que escrevesse nele as perguntas, em letra de imprensa.
Gostei da idéia e mandei a primeira pergunta. Nássara a leu e me respondeu -aos berros, como todo surdo. No começo, estranhei. Depois, achei ótimo. Vindas dele, que tinha tanto a contar, aquelas declarações aos gritos eram ainda mais fascinantes e definitivas.
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