Inspire, respire, transpire
Balé, como nunca se viu
Em São Paulo, associação monta o primeiro grupo de dança clássica profissional formado por deficientes visuais
IARA BIDERMAN, COLABORAÇÃO PARA FOLHA DE SÃO PAULO
Na infância, Geysa Kerle Pereira da Silva, 22, tinha um sonho quase óbvio entre meninas: ser bailarina. A aspiração era mais do que comum; incomum era o talento de Geysa para a dança, que ela própria desconhecia. Filha de uma família pernambucana de baixa renda, nunca teve condições de freqüentar aulas de balé. Mas, sempre que podia, assistia a espetáculos de dança e, até os nove anos, ainda sonhava em subir aos palcos.
Foi quando Geysa teve meningite e uma micose profunda no sistema nervoso central. Em conseqüência da doença, perdeu a visão e a ilusão de se tornar bailarina. A família mudou-se para São Paulo, em busca de melhores tratamentos para a menina, que passou a freqüentar o Instituto de Cegos Padre Chico. Para sua surpresa, uma das atividades extracurriculares da instituição era o balé. "Mas pode? Como quem não vê, dança?", pensou na época.
A perplexidade foi grande, mas a vontade de dançar era maior. Geysa começou a fazer aulas com a bailarina e fisioterapeuta Fernanda Bianchini e, em 2004, formou-se como bailarina profissional. Além de integrar o corpo de baile da ABCFB (Associação de Balé e Artes para Cegos Fernanda Bianchini), ela é professora na associação. Atualmente, Geysa dá aulas para crianças de sete a dez anos. Suas alunas não têm deficiência visual.
E como quem não vê aprende a dançar? Foi o que Fernanda Bianchini, 27, fundadora da ABCFB, teve de descobrir na prática, até sistematizar o seu método de ensino de dança clássica para deficientes visuais. Aluna de balé desde os três anos, Fernanda, que nunca teve problemas de visão, costumava acompanhar os pais em seus trabalhos voluntários no Instituto Padre Chico. Muitas vezes, ia à instituição depois das aulas de balé, com seu coque e sua postura de bailarina, e chamou a atenção das religiosas que trabalhavam no local.
Manter a postura e o equilíbrio são grandes dificuldades para quem não enxerga, e elas imaginaram que a dança clássica poderia ser uma forma de ajudar a superar esses problemas -se fosse possível ensiná-la.Com 15 anos e sem nunca ter dado uma aula na vida, Fernanda disse que começaria o curso em uma semana. Não tinha idéia do que faria. Certamente, era algo diferente da sua experiência em uma escola particular de balé, em que as alunas, impecáveis com as fitas no cabelo, imitam o que vêem a professora fazer.
Para a primeira aula no instituto, as alunas chegaram de calças jeans. Fernanda começou a perceber que estava entrando em um mundo totalmente novo, mas foi em frente. "Eu estava 'me achando' e disse: 'Meninas, vou ensinar um passo chamado 'echappé soutè'. É fácil.'" Ela então explicou que, para fazer o passo, elas tinham de imaginar que estavam em pé dentro de um balde e, com um salto e abrindo as pernas, pular para fora do balde, para, em seguida, voltar para dentro dele com outro salto. A explicação é boa, mas Fernanda não esperava a pergunta que veio de uma das alunas: "Tia, o que é balde?"
Experiência, intuição e persistência fizeram Fernanda descobrir como "mostrar" às alunas não apenas o que é um balde mas também como fazer piruetas, "pliés", "echappés", andar com sapatilhas de ponta e todo o repertório que faz parte da formação de uma bailarina clássica. Sem concessões. "Muita gente acha que, se o trabalho é com pessoas com alguma deficiência, basta fazer o mínimo que já está ótimo. Eu não, queria tudo perfeito."
O método permite ensinar dança clássica a quem não pode ver os corpos no espaço
Do uniforme de aula à sincronização dos passos, ela trabalhou com o grupo buscando perfeição técnica. Levou três anos até montar a primeira apresentação, pois queria que suas alunas fossem aplaudidas pela qualidade do bailado, e não pelo fato de serem deficientes visuais. Nem sempre é assim. Erros acontecem -de uma bailarina cair do palco ao som falhar no meio do espetáculo, obrigando o grupo a terminar a coreografia sem música. "Quando aconteciam erros e as pessoas falavam 'ai, que lindo!', eu odiava. Era mentira, não estava bom", diz Fernanda.
O método permite ensinar dança clássica a quem não pode ver os corpos no espaço
Do uniforme de aula à sincronização dos passos, ela trabalhou com o grupo buscando perfeição técnica. Levou três anos até montar a primeira apresentação, pois queria que suas alunas fossem aplaudidas pela qualidade do bailado, e não pelo fato de serem deficientes visuais. Nem sempre é assim. Erros acontecem -de uma bailarina cair do palco ao som falhar no meio do espetáculo, obrigando o grupo a terminar a coreografia sem música. "Quando aconteciam erros e as pessoas falavam 'ai, que lindo!', eu odiava. Era mentira, não estava bom", diz Fernanda.
O ensino de balé clássico é considerado linha-dura: tudo obedece a rígidos princípios técnicos. Fernanda teve de montar um método por conta própria para transmitir essa técnica a pessoas que não podem ver o corpo no espaço, mas que podem sentir como ele se coloca e se movimenta. Na primeira etapa, ela trabalha com a audição, explicando a postura ou o passo. Depois, vem o toque. A professora passa a mão no corpo da aluna, mostrando onde fica o pé, onde colocar a perna etc. Em seguida, a aluna passa a mão no corpo da professora, sentindo o que deve fazer. Finalmente, a professora praticamente pega a aluna no colo (às vezes, literalmente) e a acompanha no movimento.
A voz também entra em campo: a contagem do tempo ajuda a manter o ritmo. Para chegar nisso, Fernanda teve de aprender mais com as alunas do que com as referências acadêmicas. "Não há nada na literatura. Nos livros, você lê que os deficientes visuais não conseguem ficar apoiados em apenas uma perna por mais de 20 segundos. As minhas alunas ficam na ponta do pé, apoiadas em uma só perna, e ainda fazem pirueta", orgulha-se.
O reconhecimento pela excelência técnica está chegando. Não só em espetáculos, nos quais, muitas vezes, o público se levanta para aplaudir as bailarinas. Em julho deste ano, quando o bailarino Mikail Baryshnikov veio ao Brasil,foi conhecer o trabalho da ABCFB. Emocionou-se, sem dúvida, mas entrou no clima de profissionalismo, avaliando os passos das alunas como faria com qualquer membro de sua equipe.
"Essa 'ponta' não está boa", corrigia o artista àquelas amantes da dança que o admiravam sem nunca o terem visto dançar. Mas que, provavelmente, estão entre as poucas pessoas do mundo que pegaram no pé de Baryshnikov sem o bailarino achar ruim. Do mesmo modo que aprenderam a dançar, foram, uma a uma, aprender com o toque como é a "ponta" de uma grande estrela do balé.
As atividades da ABCFB recomeçam em janeiro de 2008 e os cursos são gratuitos. Informações: http://www.fernandabiachini.org.br/
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