quinta-feira, 20 de maio de 2010

Quando as aparências enganam

PASQUALE CIPRO NETO



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Outra falsa associação se dá com a palavra "feérico", que muita gente relaciona com "feroz" ou "ferocidade"
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ANDA FAZENDO friozinho em São Paulo. Friozinho e, às vezes, alguma neblinazinha.
Ontem mesmo, pela manhã, o dia demorou a nascer -ótima ocasião para lembrar o antológico "Poema Só para Jaime Ovalle", de Manuel Bandeira: "Quando hoje acordei, ainda fazia escuro/ (Embora a manhã já estivesse avançada)./ Chovia/ Chovia uma triste chuva de resignação...". Vale a pena ler o poema todo e pensar no papel da palavra "só" no título da obra do grande mestre.
Mas não era isso o que eu queria discutir. O fato é que a chuvinha e a pouca visibilidade deixaram São Paulo com cara de noite até o meio da manhã, o que, obviamente, virou notícia. Na TV, foram muitas as imagens da insólita situação, muitas delas com legendas que faziam alusão à baixa visibilidade e à "serração".
Pois bem. Que tal a palavra "serração" para definir a baixa visibilidade, o nevoeiro espesso, a neblina? Aliás, na TV, alguém chegou a dizer que parecia estranha a "serração" em plena área urbana... Pois é aí que está o nó da coisa. "Serração" (com "s" no começo) é o "ato de serrar" e, como se sabe, "serrar" é munir-se de serra ou serrote para cortar algo -madeira, por exemplo. O que ocorre quando há nevoeiro ou neblina (ou seja, quando o tempo fica "fechado") é "cerração", com "c". Nada mais justo, quando se pensa que "cerração" é o "ato de cerrar" e que "cerrar" é sinônimo de "fechar", "vedar", "tapar". A primeira acepção que o "Houaiss" dá de "cerrar" é "unir duas ou mais partes de, inibindo passagem de ar, luz, pessoas etc.".
É sempre bom lembrar uma expressão que políticos em campanha usam até mais não poder: "cerrar fileiras". Findo o processo eleitoral, muitas vezes essa expressão se transforma em "serrar fileiras"...
Voltando à neblina, nevoeiro etc., não é preciso ir muito longe para deduzir que boa parte das pessoas grafa "serração" por associação com a palavra "serra", já que o fenômeno da cerração é muito comum em regiões montanhosas. E esse caso não é isolado, não. Outra falsa associação se dá -agora quanto ao significado e não quanto à grafia- com a palavra "feérico", que muita gente relaciona com "fera", "feroz" ou "ferocidade". Já ouvi gente graúda dizer que fulano teve "reação feérica" diante de determinado fato, querendo dizer que o indivíduo teve reação feroz. "Feérico" vem do francês "féerique", que, por sua vez, vem de "fée" ("fada"). O adjetivo "feérico" diz respeito ao mundo da fantasia, ao que é mágico, deslumbrante, fantástico.
Thaís Nicoleti, companheira de trabalho na Folha, acaba de me lembrar um caso interessante: o da palavra "patético", que muita gente associa à palavra "pateta" ("tolo", "parvo", "falto de inteligência"). "Patético", que vem do grego, significa "tocante, triste; que desperta comoção, piedade, tristeza".
Ainda no território das perigosas semelhanças, lembro a expressão "um tanto quanto", que muita gente usa em casos como estes: "Ela estava um tanto quanto nervosa"; "Mostrou-se um tanto quanto despreparado". Agora o que entra em cena -creio- é o piloto automático, que leva o falante a embaralhar a expressão comparativa "tanto quanto" ("Comeu e bebeu tanto quanto quis") com a expressão de intensidade "um tanto". A expressão cabível, no caso, é "um tanto" (ou "algum tanto"): "Elas estavam um tanto (ou "algum tanto') nervosas"; "Mostrou-se um tanto (ou "algum tanto') despreparado. É isso.

Fonte: Folha de São Paulo

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