MIGUEL PORTELA
Cláudio Pereira foi um dos principais movimentadores da cultura cearense. Promoveu festivais de teatro, de música e organizou caravanas culturais
A cultura do Ceará perdeu ontem a energia e o espírito gregário de Cláudio Pereira. Produtor, gestor e principalmente "agitador" cultural, Cláudio prestou vasta contribuição a vários setores das artes cearenses
Sem nunca escrever um livro, pintar um quadro ou compor uma canção, Cláudio Roberto de Abreu Pereira prestou uma enorme contribuição à literatura, ao teatro, às artes visuais e à música do Ceará. Agregador de artistas, incentivador de talentos, mentor e realizador de múltiplos projetos, o jornalista e produtor, que se despediu na madrugada de ontem, aos 66 anos, vítima de infecção generalizada, foi um dos nomes centrais para o cenário cultural cearense, da década de 60 à atualidade.
Um longo período, durante o qual Cláudio, nascido em Columinjuba, Maranguape, e conhecido pelas convicções políticas, atuou em diversas frentes: do Grupo Universitário de Teatro e Arte - Gruta, criado por ele na mobilização estudantil nos anos 60, à produção de eventos e às participações em programas de TV, em tempos mais recentes. Passando pela contribuição direta na gestão cultural, na Fundação de Cultura da Prefeitura de Fortaleza, que ajudou a fundar em 1985 e dirigiu ao longo da maior parte da década seguinte.
Estudante do Liceu do Ceará, onde já produzia jornais e articulava eventos de cultura, foi preso e torturado durante a ditadura militar, como registrou em entrevistas. Formado em Direito, trabalhou como jornalista, escrevendo para diversos veículos. Foi funcionário do Banco do Nordeste, cargo do qual, segundo relatos de amigos, se aposentou após o acidente, em 18 de novembro de 1973, que o deixou em uma cadeira de rodas.
"O acidente foi bem perto de João Pessoa. A gente estava voltando já da segunda viagem pra Recife, pra acertar uma exposição minha lá", reconstitui o artista plástico e compositor Alano Freitas. "O Cláudio vinha dirigindo, e a gente capotou. Eu e o Hélder, um amigo que vinha também, ficamos uns cinco dias hospitalizados. O Pereira mais. Ficou em coma uns 40 dias", recorda. "O Cláudio foi o grande animador e a grande referência intelectual da nossa geração, junto com o Augusto Pontes. Eles não se afinavam, mas foram gurus de uma mesma geração", aponta Alano. Uma missão que Pereira seguiu cumprindo, apesar das adversidades. "Os médicos na época disseram que ele só ia viver dois anos. Viveu até hoje", emocionava-se, ontem, no velório na Aldeota, o funcionário público Cartaxo Arruda. "Ele dizia que a única coisa que ele tinha medo era de morrer. E ele resistiu, viu?".
O amigo se refere aos muitos problemas de saúde acumulados por Cláudio, que a despeito das dificuldades manteve forte participação na cena cultural. "O Pereira era onipresente, tava em muitos lugares ao mesmo tempo. Em uma noite ia a cinco, seis eventos, mesmo de cadeira de rodas", recorda o compositor e ator Rodger Rogério. "Fazia as caravanas culturais nos anos 60, levando artistas de Fortaleza pra Sobral, pro Cariri, até pra Argentina, pro Chile... Ele já tinha página em jornal em 64, 65, por aí, e divulgava os artistas cearenses. Deu uma contribuição muito grande pra música, pro teatro, pras artes de uma maneira geral", desfia Rodger.
"Teve também o tempo em que ele morou na Beira-mar, bem perto do Bar do Anísio. Ali era uma festa constante dos artistas reunidos, se bebia todo dia. Muitas vezes ele ia dormir e a festa continuava", lembra Rodger, assinalando, sobre o amigo: "Ele comemorava até o aniversário da Queda da Bastilha... Pra ele tudo era motivo de festa. Ele vivia numa festa". De amigos, cultura e arte.
REPERCUSSÃO
GRANDE PERDA
GILMAR DE CARVALHO 0 - professor
O grande legado do Cláudio foi a agitação, condição que ele levou às últimas consequências de estimular as pessoas e fazer com que elas criassem e interferissem no marasmo da cidade. Desde o final dos anos 80, esteve presente em quase todos os movimentos culturais. Sempre me impressionou sua vitalidade, sua energia e sua vontade de viver. Vai fazer muita falta.
FRANCIS VALE - cineasta
Fortaleza perdeu uma das pessoas mais importantes no campo da cultura nos últimos 40 anos. Lembro que nos anos 60, fundou o Grupo Universitário de Arte da UFC. Organizou, ainda nos anos 60, um importante Festival de Música. Ele implantava em Fortaleza as mesmas ideias de grupos como o "Opinião" e dos Centros Populares de Cultura. Outro grupo que Pereira fundou foi o Cactus, um grupo musical que trouxe à cena Nonato Luiz e Rodger Rogério.
AUTO FILHO - Secretário da Cultura do Estado
Cláudio Pereira era um ativista do partido da cultura, foi diretor do MIS-CE, secretário da Cultura de Fortaleza e contribuiu para o desenvolvimento do setor. Soube usar, ocupar e viver a cidade, como poucos. A cultura cearense lamenta a sua morte
DALWTON MOURA
REPÓRTER DIÁRIO DO NORDESTE
O "Dom Quixote" da Cultura
A relação de Cláudio Pereira com os jornais nem sempre foi cordial, nos 12 anos em que ele dirigiu a Fundação Cultural de Fortaleza, até maio de 1998. As críticas à sua gestão, prolongada ao longo de vários mandatos, eram inúmeras. Cláudio rebatia muitas, mas concordava com outras. Na verdade, Pereira sempre foi um agitador cultural. E nunca teve nem dinheiro, nem poder suficiente para levar à frente seus inúmeros projetos. Mesmo assim, fez muito pela cultura de Fortaleza, também quando dirigiu a Funcet.
Sua demissão do órgão o deixou decepcionado. Cláudio não aceitou bem o fato. E saiu atirando. Em entrevista ao Diário do Nordeste, deu uma velha e surrada desculpa: estaria saindo para tratar de problemas pessoais. Na verdade, Pereira estava sendo "fritado" pelo prefeito Juraci Magalhães. Na mesma entrevista, Pereira revelou publicamente o câncer do então prefeito, notícia desmentida na ocasião pela assessoria do político, mas logo confirmada. Cláudio estava comovido durante o desenrolar da entrevista, realizada em seu gabinete na Funcet, em maio de 1998. "Minha decisão vinha sendo amadurecida há meses, mas com a doença de Juraci - o prefeito tem câncer - resolvi recuar", disse. Na verdade, foi abandonado e seu processo de desgaste avançava a passos largos. Acuado, deixou o cargo. Ressentido.
Pereira foi, na verdade, um "Dom Quixote" da cultura. Bateu em várias portas, de chapéu na mão, em busca de verbas para tocar seus projetos. Moveu moinhos de vento. Foi chamado pejorativamente de "animador de quermesses". Até gostava. Pois, para ele, o mais importante era a cultura. Nunca escondeu o fato da falta de verbas e apoio para a área.
A comparação com o então secretário Paulo Linhares veio logo. Só que o governo Tasso Jereissati investiu mais no setor. E Juraci, não. Na verdade, debatiam-se, então, as políticas culturais postas em prática tanto pela Secult quanto pela Funcet. Existia, de fato, uma política cultural no Estado? Ou apenas uma bem pensada estratégia de divulgação do Estado através da cultura? As discussões envolviam artistas, gestores e jornalistas e costumavam ser acirradas.
Cláudio Pereira, o "primo pobre", levantou várias bandeiras na periferia de Fortaleza, aproveitando festas como o Carnaval e o São João. Festas juninas e o pré-carnaval, hoje estruturados, devem muito ao seu trabalho. Instituiu ainda festivais de teatro e de vídeo e os prêmios Paurillo Barroso e Eduardo Campos. Todos criados por leis municipais. Hoje, jogados para baixo do tapete.
Pereira sempre repetia uma frase nas suas inúmeras entrevistas. "É até um lugar comum - dizia - mas sem investimento em cultura e educação vamos permanecer no estágio de subdesenvolvimento em que nos encontramos". Estágio em que, ainda hoje, continuamos, apesar de alguns avanços conseguidos nos últimos anos. Um debate que, tão comum naqueles anos, deveria ser retomado.
JOSÉ ANDERSON SANDES
EDITOR DO CADERNO 3 - DIÁRIO DO NORDESTE
Sem nunca escrever um livro, pintar um quadro ou compor uma canção, Cláudio Roberto de Abreu Pereira prestou uma enorme contribuição à literatura, ao teatro, às artes visuais e à música do Ceará. Agregador de artistas, incentivador de talentos, mentor e realizador de múltiplos projetos, o jornalista e produtor, que se despediu na madrugada de ontem, aos 66 anos, vítima de infecção generalizada, foi um dos nomes centrais para o cenário cultural cearense, da década de 60 à atualidade.
Um longo período, durante o qual Cláudio, nascido em Columinjuba, Maranguape, e conhecido pelas convicções políticas, atuou em diversas frentes: do Grupo Universitário de Teatro e Arte - Gruta, criado por ele na mobilização estudantil nos anos 60, à produção de eventos e às participações em programas de TV, em tempos mais recentes. Passando pela contribuição direta na gestão cultural, na Fundação de Cultura da Prefeitura de Fortaleza, que ajudou a fundar em 1985 e dirigiu ao longo da maior parte da década seguinte.
Estudante do Liceu do Ceará, onde já produzia jornais e articulava eventos de cultura, foi preso e torturado durante a ditadura militar, como registrou em entrevistas. Formado em Direito, trabalhou como jornalista, escrevendo para diversos veículos. Foi funcionário do Banco do Nordeste, cargo do qual, segundo relatos de amigos, se aposentou após o acidente, em 18 de novembro de 1973, que o deixou em uma cadeira de rodas.
"O acidente foi bem perto de João Pessoa. A gente estava voltando já da segunda viagem pra Recife, pra acertar uma exposição minha lá", reconstitui o artista plástico e compositor Alano Freitas. "O Cláudio vinha dirigindo, e a gente capotou. Eu e o Hélder, um amigo que vinha também, ficamos uns cinco dias hospitalizados. O Pereira mais. Ficou em coma uns 40 dias", recorda. "O Cláudio foi o grande animador e a grande referência intelectual da nossa geração, junto com o Augusto Pontes. Eles não se afinavam, mas foram gurus de uma mesma geração", aponta Alano. Uma missão que Pereira seguiu cumprindo, apesar das adversidades. "Os médicos na época disseram que ele só ia viver dois anos. Viveu até hoje", emocionava-se, ontem, no velório na Aldeota, o funcionário público Cartaxo Arruda. "Ele dizia que a única coisa que ele tinha medo era de morrer. E ele resistiu, viu?".
O amigo se refere aos muitos problemas de saúde acumulados por Cláudio, que a despeito das dificuldades manteve forte participação na cena cultural. "O Pereira era onipresente, tava em muitos lugares ao mesmo tempo. Em uma noite ia a cinco, seis eventos, mesmo de cadeira de rodas", recorda o compositor e ator Rodger Rogério. "Fazia as caravanas culturais nos anos 60, levando artistas de Fortaleza pra Sobral, pro Cariri, até pra Argentina, pro Chile... Ele já tinha página em jornal em 64, 65, por aí, e divulgava os artistas cearenses. Deu uma contribuição muito grande pra música, pro teatro, pras artes de uma maneira geral", desfia Rodger.
"Teve também o tempo em que ele morou na Beira-mar, bem perto do Bar do Anísio. Ali era uma festa constante dos artistas reunidos, se bebia todo dia. Muitas vezes ele ia dormir e a festa continuava", lembra Rodger, assinalando, sobre o amigo: "Ele comemorava até o aniversário da Queda da Bastilha... Pra ele tudo era motivo de festa. Ele vivia numa festa". De amigos, cultura e arte.
REPERCUSSÃO
GRANDE PERDA
GILMAR DE CARVALHO 0 - professor
O grande legado do Cláudio foi a agitação, condição que ele levou às últimas consequências de estimular as pessoas e fazer com que elas criassem e interferissem no marasmo da cidade. Desde o final dos anos 80, esteve presente em quase todos os movimentos culturais. Sempre me impressionou sua vitalidade, sua energia e sua vontade de viver. Vai fazer muita falta.
FRANCIS VALE - cineasta
Fortaleza perdeu uma das pessoas mais importantes no campo da cultura nos últimos 40 anos. Lembro que nos anos 60, fundou o Grupo Universitário de Arte da UFC. Organizou, ainda nos anos 60, um importante Festival de Música. Ele implantava em Fortaleza as mesmas ideias de grupos como o "Opinião" e dos Centros Populares de Cultura. Outro grupo que Pereira fundou foi o Cactus, um grupo musical que trouxe à cena Nonato Luiz e Rodger Rogério.
AUTO FILHO - Secretário da Cultura do Estado
Cláudio Pereira era um ativista do partido da cultura, foi diretor do MIS-CE, secretário da Cultura de Fortaleza e contribuiu para o desenvolvimento do setor. Soube usar, ocupar e viver a cidade, como poucos. A cultura cearense lamenta a sua morte
DALWTON MOURA
REPÓRTER DIÁRIO DO NORDESTE
O "Dom Quixote" da Cultura
A relação de Cláudio Pereira com os jornais nem sempre foi cordial, nos 12 anos em que ele dirigiu a Fundação Cultural de Fortaleza, até maio de 1998. As críticas à sua gestão, prolongada ao longo de vários mandatos, eram inúmeras. Cláudio rebatia muitas, mas concordava com outras. Na verdade, Pereira sempre foi um agitador cultural. E nunca teve nem dinheiro, nem poder suficiente para levar à frente seus inúmeros projetos. Mesmo assim, fez muito pela cultura de Fortaleza, também quando dirigiu a Funcet.
Sua demissão do órgão o deixou decepcionado. Cláudio não aceitou bem o fato. E saiu atirando. Em entrevista ao Diário do Nordeste, deu uma velha e surrada desculpa: estaria saindo para tratar de problemas pessoais. Na verdade, Pereira estava sendo "fritado" pelo prefeito Juraci Magalhães. Na mesma entrevista, Pereira revelou publicamente o câncer do então prefeito, notícia desmentida na ocasião pela assessoria do político, mas logo confirmada. Cláudio estava comovido durante o desenrolar da entrevista, realizada em seu gabinete na Funcet, em maio de 1998. "Minha decisão vinha sendo amadurecida há meses, mas com a doença de Juraci - o prefeito tem câncer - resolvi recuar", disse. Na verdade, foi abandonado e seu processo de desgaste avançava a passos largos. Acuado, deixou o cargo. Ressentido.
Pereira foi, na verdade, um "Dom Quixote" da cultura. Bateu em várias portas, de chapéu na mão, em busca de verbas para tocar seus projetos. Moveu moinhos de vento. Foi chamado pejorativamente de "animador de quermesses". Até gostava. Pois, para ele, o mais importante era a cultura. Nunca escondeu o fato da falta de verbas e apoio para a área.
A comparação com o então secretário Paulo Linhares veio logo. Só que o governo Tasso Jereissati investiu mais no setor. E Juraci, não. Na verdade, debatiam-se, então, as políticas culturais postas em prática tanto pela Secult quanto pela Funcet. Existia, de fato, uma política cultural no Estado? Ou apenas uma bem pensada estratégia de divulgação do Estado através da cultura? As discussões envolviam artistas, gestores e jornalistas e costumavam ser acirradas.
Cláudio Pereira, o "primo pobre", levantou várias bandeiras na periferia de Fortaleza, aproveitando festas como o Carnaval e o São João. Festas juninas e o pré-carnaval, hoje estruturados, devem muito ao seu trabalho. Instituiu ainda festivais de teatro e de vídeo e os prêmios Paurillo Barroso e Eduardo Campos. Todos criados por leis municipais. Hoje, jogados para baixo do tapete.
Pereira sempre repetia uma frase nas suas inúmeras entrevistas. "É até um lugar comum - dizia - mas sem investimento em cultura e educação vamos permanecer no estágio de subdesenvolvimento em que nos encontramos". Estágio em que, ainda hoje, continuamos, apesar de alguns avanços conseguidos nos últimos anos. Um debate que, tão comum naqueles anos, deveria ser retomado.
JOSÉ ANDERSON SANDES
EDITOR DO CADERNO 3 - DIÁRIO DO NORDESTE
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