domingo, 4 de abril de 2010

Por gentileza, Fortaleza

Izabel Gurgel
Jornalista



Na praia, quero ouvir o barulho do mar. No teatro, só o espetáculo. No cinema, o filme. Na sala de aula, a aula. Em casa, sons que não incomodem a vizinhança. Na praça, o buchicho das conversas. Nas igrejas, rezar baixinho: os deuses não são surdos. Deixar profissionais e pacientes atravessarem uma dura noite em hospital sem som de carro. No Passeio Público e no jardim do TJA, quero ouvir passarinhos. Vivo em Fortaleza. Quero viver em outra cidade: Fortaleza sem som automotivo. Quero mais: calçadas livres, ruas limpas, iluminadas, transporte público decente. Um dia tocado por ``Bom dia`` ao desconhecido que passa, movido a ``Por gentileza``, ``Com licença``, ``Por favor`` e ``Muito agradecida``. Ainda que não saibamos, estamos exauridos pela grosseria que não cessa de prosperar na cidade.

Do ônibus ou da Hilux, por gentileza, não jogue lixo na rua. Não encontrar lixeira não é desculpa: leve um saquinho na bolsa. Respeite o ciclista: para 7% da cidade, a bicicleta é o único meio de transporte. A vaga para deficiente é para portadores de deficiência... A fila é para todos, todos temos pressa & ainda que não saibamos como inventamos uma vida assim - e não precisamos de lei para dar passagem aos velhos, às pessoas com crianças, às mulheres grávidas: é só se colocar no lugar do outro. Miúda, eu já sabia que dar o lugar aos mais velhos era uma regra que valia sempre no ônibus, na fila...

Por gentileza, não buzine: se estou parada é porque engarrafamos a vida. É cada vez mais difícil o ir-e-vir mais banal. Vai para a balada, ao Centro ou ao estádio? Com tanta grana, por que não pega um táxi? Sobretudo, ao deitar e ao acordar, lembre-se: não existe só você no mundo. Não grite; não chame o garçom ou a vendedora com um ``Ei!``; saiba que muitas vezes seu celular pode ficar desligado e o mundo continuará girando.

Quero viver em Fortaleza assim: nos 365 dias do ano, com a civilidade dos dias extraordinários. Ainda ressoa o relato da amiga moradora da Santos Dumont que desceu a João Cordeiro a pé para o Réveillon na praia, à vontade na rua, sem pânico em relação ao outro: sim, porque o medo incorporado é acionado a cada encontro com quem quer que seja. É um alento saber do casal amigo que voltou do Réveillon fazendo o caminho contrário, pegou um ônibus na mesma Santos Dumont às duas da manhã e foi para casa, prática comum para quem mora em uma cidade que sabe viver.

Quero sim a civilidade da Domingos Olímpio no Carnaval. Senhoras levando cadeiras de casa para ver o desfile, crianças brincando, muitos mundos partilhando um mesmo espaço. Como no Pré-Carnaval no Jardim das Oliveiras, reunindo o time de futebol e o bloco do bairro com a Escola de Samba Império Ideal: não lhe conheço, não sei quem você é, talvez não nos encontremos nunca mais, mas vivemos juntos e precisamos, você e eu, cuidar de nós mesmos e cuidar da cidade. Cuidar da vida (na cidade) é uma tarefa cotidiana e coletiva. Agora está na nossa mão, por exemplo, desligar a violência do som automotivo. O paredão de som é pago. O silêncio é gratuito. Tem gente fazendo negócio com o nosso silêncio. E criando um lastro de brutalidade. Nunca quis isso. Agora, por gentileza, não fico calada. Viver com o outro é nosso aprendizado diário. Eu quero aprender!

Izabel Gurgel dirige o Theatro José de Alencar com Silêda Franklin

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