50. Pensando além de si próprio
Já por várias vezes foi abordado nestes textos o conceito da “autotranscendência”. É a capacidade humana de alguém se envolver com algo ou com alguém que não ele próprio: a mãe que se empenha pela saúde e o desenvolvimento do filho, o esposo que procura tornar feliz a esposa, a mulher que luta por diminuir a mortalidade infantil ... A autotranscendência é considerada na logoterapia como o ponto mais alto a que o desenvolvimento humano pode chegar: o potencial, que só o ser humano possui, de pensar além de si próprio, de dedicar-se a uma pessoa ou a uma causa.
As culpas alheias, como sabemos, não devem prender nossa atenção. Mas isso não implica que o “alheio” deva desaparecer por completo dos nossos interesses. “O alheio”, para Viktor Frankl, é aquilo que “termina não sendo apenas nós mesmos”. É o alheio que completa o mundo. Nossa existência depende do alheio como o olho depende da luz - não no sentido de consumir ou de dominar, mas no desejo de irmos além de nós mesmos e de nos doarmos com amor ao outro e à necessidade do outro. Como ilustração concreta de uma atitude autotranscendente, vejamos este diálogo entre uma mulher e sua vizinha:
A mulher: Meu marido e eu estamos pensando em receber em nossa casa um casal estrangeiro com o filho, que teve de deixar sua terra por perseguição política.
A vizinha: Sim, e o que vocês ganham com isso?
A mulher: Nós achamos que o casal e o filho vão sair ganhando com isso... o sendo apenas na n"eto do horizonte de nossos interesses.
Neste diálogo a mulher – ao contrário da vizinha - argumenta para “além de si mesma”, ela está se “auto-superando”. Ela toma consciência de três seres estranhos que estão precisando de ajuda, e deseja ajudá-los, simplesmente por serem pessoas humanas necessitadas. Sua atenção está voltada para os valores alheios. Esta é uma atitude de “autotranscendência”.
Em 1992 foi publicado um trabalho de L. Sagan em que ele estuda os hábitos de pessoas do mundo inteiro que atingiram idades avançadas. Ele diz: “As pessoas de vida longa, embora tenham um elevado auto-respeito, não estão excessivamente preocupadas consigo mesmas, nem se envolvem unicamente com a própria pessoa ou com o próprio bem-estar. Elas fazem planos que vão muito além de sua vantagem pessoal. Podem ser metas amplas ou modestas, mas o importante é que são metas não-egoístas, metas de utilidade para os outros. As pessoas de vida longa costumam possuir um pronunciado senso de comunidade.”
No mesmo ano apareceu também um trabalho de S. Covey ocupando-se com os hábitos das personalidades americanas de maior sucesso. Também ele conclui: “As pessoas bem sucedidas tentam primeiro compreender, e só depois ser compreendidas.”
Melhor do que as outras, essas pessoas conseguem compreender melhor as coisas e as pessoas, têm maior facilidade em ver como elas são únicas e em entender os valores que possuem, mesmo antes de fazerem projetos de ajuda. Quando interiorizamos os valores alheios, isto provoca em nós três coisas:
1. Desperta a vontade de servir, de nos dedicar às pessoas com amor, empenhando-nos por levá-las à realização. Mais do que o medo ou a força, a dedicação nos torna criativos. [A mulher que se sente atingida pelo destino trágico dos refugiados tem o desejo sincero de minorar a necessidade de criaturas que enfrentam problemas, mesmo que isto exija dela muito sacrifício.]
2. A percepção dos valores alheios evidencia também a importância de não nos explorarmos em demasia, de evitarmos o esgotamento, pois então nada mais poderíamos fazer em favor dos outros. [A mulher que acolhe os refugiados não quer pôr em risco a própria família. Compartilha o que tem, mas sem que com isso passe a ser um peso para os outros.]
3. A percepção dos valores alheios cria em nós uma certa liberdade quanto às próprias necessidades. Podemos simplesmente alegrar-nos com a existência dos valores alheios, ficar descontraídos por não precisarmos ter aqueles valores que não são nossos. [A mulher que oferece abrigo à família estranha não está em busca de obter alguma satisfação, talvez por ela própria não ter filhos. Poderá com alegria deixar seus hóspedes partirem quando eles puderem voltar para sua terra.]
Para quem possui uma mentalidade autotranscendente, a dedicação criativa, um estilo razoável de vida e o não precisar levar vantagem em tudo constituem um tesouro, que tem como origem a percepção dos valores alheios. Para uma vida feliz e bem sucedida não há necessidade de muito mais do que isso!
O sentido da vida de uma pessoa, assim como o sentido de cada momento e de cada ação dessa pessoa, nunca está voltado para ela própria, mas sempre para outra pessoa, ou para uma causa fora dessa pessoa. Os pais que ganharam um filho empenham-se por fazer com que ele cresça e desenvolva-se, sem por isso esperarem alguma recompensa. E isto preenche sua vida de sentido. Nem irão recuar diante dos sacrifícios que lhes serão exigidos.
O que se disse aqui sobre autotranscendência não se assemelha muito ao mandamento do amor ao próximo? Com efeito, quase não conseguimos perceber diferença alguma. Como cristãos, que é que entendemos concretamente por amor ao próximo, dentro dos contextos (família, profissão, sociedade) em que dia por dia se desenrola nossa vida? Busquemos responder a essa pergunta por meio de um rápido “exame de consciência”:
Na família: Como é que aquilo que eu digo ou faço afeta o outro, apoiando-o, ou então o contrariando? Mostro agressividade para com pessoas da família? Não seria necessário se ouvir mais e falar menos? Será que o que eu digo está sendo entendido pelo outro? Esforço-me por entender o ponto de vista do outro?
No trabalho (além disso): Estou de fato empenhado em atingir os objetivos do grupo? Tenho espírito de equipe, procuro aliviar a carga do outro, em vez de aumentá-la?
Na sociedade (além de tudo isso): Assumo de fato minha responsabilidade social (pessoal, legal, política, ecológica)?
Filho, não prives o pobre do necessário à vida,
nem deixes desfalecer os olhos do indigente.
Não aflijas quem tem fome,
nem exasperes quem esteja em dificuldade.
Não acrescentes perturbação ao coração exasperado,
Nem adies tua ajuda a quem precisa.
Não rejeites um suplicante angustiado,
Nem afastes do pobre o teu rosto.
Não desvies o olhar do necessitado,
Nem lhe dês motivo para te maldizer.
Se ele te maldisser na amargura de sua alma,
Quem o criou escutará sua imprecação.
Eclesiástico 4,1-6
Enviado por Carlos Almeida Pereira, Campina Grande/Pb
sábado, 10 de maio de 2008
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