domingo, 2 de setembro de 2007

Complexos e demônios


Os primeiros monges no deserto experimentaram na própria pele que existem no homem numerosas tendências para o mal e o pecado: gula, tristeza, vaidade... Eles não dispunham dos conhecimentos psicológicos que nós possuímos hoje, mas experimentavam os mesmos problemas que nós. A explicação que encontraram foi atribuir essas más inclinações aos demônios: o demônio da gula, o demônio da ira ... Chegaram, mesmo, a uma classificação dos demônios com base na “doutrina dos oito vícios”, que são: gula, luxúria, cobiça, tristeza, ira, preguiça, vaidade e orgulho. A cada um desses vícios é atribuído um demônio, com determinadas características: uns são mais leves outros mais pesados, uns atacam de dia outros de noite, e assim por diante. Os vícios são, assim, personificados. É como se fosse um interlocutor autônomo, um demônio que tenta a pessoa e que a procura impelir para um instinto, uma emoção ou uma cegueira espiritual.


Sempre que lemos ou ouvimos essas coisas, surge em nós a pergunta: Existem mesmo demônios? Quando se faz esta pergunta, se está pressupondo que nós sabemos exatamente o que são demônios, e que podemos dizer de forma categórica se eles existem ou não. Estamos enxergando na palavra demônio um conceito solidamente estabelecido. Mas de fato é com uma imagem que estamos lidando, com um símbolo para uma realidade que não pode ser apreendida em conceitos puros. A natureza humana não se modificou. Os fenômenos observados pelos antigos monges, e por eles descritos como demônios, precisam ser levados a sério também hoje. Com nossos atuais conceitos psicológicos, nós lhes daríamos outros nomes. Que diz sobre isso a psicologia?


O próprio Carl Gustav Jung, que poderia ser chamado o “papa” da psicologia, também fala de demônios no contexto de sua teoria dos complexos autônomos. Quando transferimos para outra pessoa nossos desejos ou emoções (raiva, ódio, indignação...), nós estamos deixando de ver essa pessoa como ela é na realidade. Estamos nos deixando enganar por nossas próprias projeções. Os antigos monges diriam que estamos sendo “enganados por um demônio”. Sempre que somos alvo das projeções negativas de outra pessoa, nós sentimos quase que fisicamente o ódio do outro, como se fosse um projétil. O efeito do que os outros projetam sobre nós também era entendido como sendo provocado por um demônio.


Para Jung as projeções são causadas por complexos. Que é um complexo? É um conjunto de sentimentos, lembranças e imagens inconscientes, reprimidas e com uma forte carga afetiva: complexo de inferioridade, por exemplo. Consciente ou inconscientemente, o complexo impele o indivíduo a pensar, sentir, e por vezes a agir sempre de uma forma determinada. O complexo adquire certo grau de autonomia. Por esse motivo Jung mostra compreensão para o fato de, com os demônios, os antigos haverem personificado os complexos. Os complexos vêm ao nosso encontro como se fossem pessoas. Por serem inconscientes, conseguem por vezes dominar-nos. Jung chega mesmo a dizer que, com sua idéia de considerar os complexos como seres autônomos, como demônios, os antigos teriam apreendido melhor a situação do que as modernas tentativas de diminuir a importância dos complexos. Quando alguém diz: “Eu tenho um complexo”, na realidade é o complexo que o tem. Os antigos, ao falarem de possessão pelo demônio, descrevem com mais acerto o efeito do complexo.


Que será que, em última análise, descreve melhor os fenômenos: a linguagem puramente científica da psicologia, ou uma linguagem que trabalha com imagens mitológicas, e que por conseguinte não restringe a realidade a algo que pode ser exatamente determinado, mas deixa espaço para o inapreensível? Quem diz que “os demônios nada mais são do que complexos”, não está tornando a realidade mais clara, está pelo contrário encobrindo-a. Dizer que os demônios não passam de idéias, que não são senão inclinações da vontade, reduz a realidade àquilo que pode ser estabelecido, àquilo que nós já conhecemos. E com isto impede-nos de continuar pesquisando o desconhecido. Será que nós conhecemos por completo o mistério do pensamento e das paixões? Será que realmente sabemos o que são as emoções, o que são os complexos? O que importa, então, não é acreditar ou não acreditar nos demônios. É ocupar-nos com os fenômenos que os monges descreveram como demônios, e que hoje como ontem nós não podemos ignorar.


Texto baseado em Anselm Grün, Convivendo com o Mal.
Tradução e adaptação de Carlos Almeida , Campina Grande/Pb

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