Embora freqüentemente não consigamos entender o sofrimento, sempre é possível enfrentá-lo com sentido. É o que se torna evidente no relato a seguir:
Visitei, certa vez, um hospício para doentes de AIDS na Sicília. Os inquilinos, na sua maioria, eram rapazes ou jovens que, quando adolescentes, haviam sido seduzidos ao vício e contraído o vírus da AIDS. Por serem “drogados”, suas relações familiares e de amizade há muito estavam rompidas. Muitos deles também haviam cometido crimes e estavam presos. Com o avanço da doença, não havia mais nada que os médicos pudessem fazer por eles. Como não tinham casas que os pudessem acolher, para a fase terminal haviam sido transferidos para o hospício.
Quem já trabalhou com doentes de AIDS sabe que a fase terminal é extremamente dolorosa, além de muito humilhante, por causa das constantes diarréias. Os jovens ainda apresentavam belos rostos, mas seus corpos estavam muito debilitados, por vezes sacudidos por cãibras. Pior que tudo, no entanto, era a falta de esperança e de resignação, o ter que esperar passivamente a morte, contra a qual se rebelavam com todas as suas fibras.
Diante disso, os auxiliares do hospício, que tinham formação logoterapêutica, conseguiram introduzir uma experiência-piloto. Sob a direção de um artista russo, residente no local, conseguiram abrir uma oficina de pintura de ícones. Cada enfermo podia determinar o tamanho da placa de madeira que iria pintar, de conformidade com as forças que ainda julgava possuir. O tema da pintura também podia ser escolhido com liberdade, não precisava ser um tema religioso. Além de anjos e madonas, foram pintadas também paisagens, cenas das aldeias onde haviam crescido ...
Depois, todos os que quiseram – e todos quiseram! – começaram a pintar seus ícones. Cada um recebia regularmente orientação artística, e se necessário suportes e armações para poderem pintar sem levantar-se da cama. Aprenderam a misturar as cores, a aplicar finas camadas de verniz sob as quais transpareciam com suavidade as listras da madeira, a estampar camadas de ouro e prata. Apesar da fraqueza, os doentes dedicaram-se à pintura com incrível dedicação e desapego.
Cada um foi solicitado ainda a dedicar seu ícone a uma pessoa, que iria recebê-lo depois que ele morresse. Por exemplo, a alguém que ele amou um dia, ou a quem desejava pedir perdão. Ocorreram aqui cenas tocantes. Um jovem doente de AIDS, por exemplo, dedicou a seu pai o ícone em que trabalhou com afinco, embora há anos o pai nada mais quisesse saber do filho viciado em drogas. Outros dedicaram seus ícones aos que cuidavam deles no hospício, como agradecimento por essa “última ajuda”. Estes ganharam um lugar de honra no corredor da instituição.
Doze meses depois, qual o balanço da experiência-piloto? Três coisas:
Desde que a pintura icônica foi introduzida no hospício, só foi consumida a metade dos analgésicos que se consumiam antes. Prova de que os enfermos, por algum tempo, “esqueciam” suas dores.
Desde que a pintura icônica foi introduzida, deixaram de existir os terríveis gritos de agonia mortal que antes abalavam a casa. Prova de que os enfermos puderam morrer mais reconciliados.
O que mais impressionou, no entanto, foi que durante os doze meses da experiência-piloto ninguém morreu sem antes haver concluído seu ícone. Prova da triunfal vitória do espírito sobre a enfermidade do corpo.
Lição a tirar daí: a quem estiver gravemente enfermo pode-se recomendar que, por medo da morte, não perca a coragem de viver com sentido. Pelo contrário: precisamente por causa da morte próxima comecem a criar sua própria “obra-prima”, seja em que for que ela consista. Não lhes há de faltar tempo para isso.
Texto de Elisabeth Lukas: O Sentido do Momento Presente, p. 82-85
Tradução de Carlos Almeida – 10.08.2007
sexta-feira, 10 de agosto de 2007
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